Ambrose Bierce é de certo modo precursor dos pensadores de "tiro curto" como Millôr e Barão de Itararé.

“Dicionário do Diabo”, de Ambrose Bierce (Carambaia, 2016, 304 páginas)

Custou pouco mais de um século para que o Dicionário do Diabo, vocabulário redigido por um dos mais ferinos autores da virada do séc. XIX para o XX, chegasse finalmente ao Brasil, agora em edição inteiramente nacional. A editora responsável pela brochura em capa dura trazendo 304 páginas de verbetes, poemas e citações da edição original norte-americana é a Carambaia, em tradução assinada por Rogério Galindo. Utilizando o formato de um dicionário diagramado em duas colunas por página, a coleção de verbetes flerta com a “escuridão” além do título diabólico. Ao usar papel preto e contra-impressão em branco, o resultado obtido na publicação não é outro que um artigo para colecionadores.

Inicialmente veiculado de forma esparsa em periódicos californianos com os quais ele colaborava, o compêndio de definições sardônicas de Bierce está para as obras de referência como uma espécie de contraveneno. É um livro que, se encarado de cabo a rabo, certamente resultará maçante, pois a ironia presta-se bem mais a estocadas sutis do que ao massacre discursivo. Por outro lado, como um bom dicionário deve ser, o de Bierce é capaz de esclarecer ao leitor do que pode lhe parecer eventualmente nebuloso; no caso específico, mais ou menos algo como a dimensão da natureza humana e mundana revelados, ou melhor explicados, em seus aspectos mais inesperados e sombrios. Tal é a especialidade do léxico ambroseano.

São de prestar atenção em seu dicionário as definições empregadas para definir termos usualmente inofensivos nos dicionários comuns. “Patriota”, por exemplo, um termo em tudo elogioso, na boca de Bierce deve ser lido como “Alguém para quem os interesses de uma parte parecem ser superiores aos interesses do todo. Joguete dos estadistas e ferramenta de conquistas.” Para Bierce, entende-se por nação a “Entidade administrativa operada por uma incalculável multidão de parasitas políticos, logicamente ativos, mas apenas fortuitamente eficientes.” E sua definição de “deputado” é outra ainda hoje muito difícil de contestar: “Na política nacional, um membro da Câmara Baixa neste mundo, sem esperança visível de promoção no outro.”

Embora o dicionário de “Bitter” Bierce, o amargo, não tivesse sido ainda publicado na íntegra no Brasil, suas definições são bem conhecidas por aqui há muito tempo, assim como sua produção literária, principalmente seus contos de terror, como O Mestre de Moxon e outros. Trechos do Dicionário foram antologizados recentemente na Antologia da Maldade (Zahar, 2015), no livro Mau Humor, de Ruy Castro (Companhia das Letras, 2002), e em algumas outras coletâneas de citações.

A bem da verdade, o humor de Bierce teria hoje escasso parentesco no Brasil, quando o escracho, o grosseiro e a cada vez mais necessária explicação da piada são de fazer usar a porta dos fundos dos mais bem frequentados ambientes. Talvez nem o último grande utilizador brasileiro da ironia como recurso literário, Millôr Fernandes, suportasse a excessiva luminosidade dos aspirantes ao humor atual. Faz todo o sentido: a verdadeira ironia flerta com o anárquico, não com o poder. Seu terreno é por excelência a penumbra do subentendido, não platitudes e obviedades. E se deixa de apontar a degeneração política e civilizacional faz pouco mais do que servir de sonífero, placebo inútil ou remédio a sanar justamente a quem lhes dá causa, ao invés de aplacar a agonia de quem sofre suas consequências.

Apesar de essencialmente explicativas e bem menos literárias do que as máximas da Bíblia do Caos, de Millôr Fernandes ou das “mínimas” de Aparício Torelly, o Barão de Itararé, Bierce é de certo modo precursor destes e de tantos outros pensadores de “tiro curto”. Um precursor do estilo irônico e descrente talhado no jornalismo e na literatura subsequentes à violência resultante da Guerra de Secessão, da qual ele também participou como militar.

Dado pelos contemporâneos como figura ególatra e arrogante, Bierce envolveu-se em polêmicas religiosas, políticas e ideológicas. Dominado por uma visão cética do mundo e do tempo que testemunhava, tornou-se um crítico selvagem do comportamento da época e do senso comum, o que em muito contribuiu para que alternasse fases de isolamento e de intensa produção. Seu destino incerto (os restos mortais de Bierce nunca teriam sido encontrados após sua morte), de quem poderia ter se suicidado ou fuzilado após um breve envolvimento com o exército de Pancho Villa no México, aliado a imagem de indomável, coloca a figura e a obra de Bierce num lugar de difícil de compreensão. O Dicionário do Diabo, neste caso, é uma excepcional ajuda para compreender-se melhor tanto o autor quanto a sua mordaz e peculiar visão de mundo.

Lúcio Carvalho

Editor da revista digital Inclusive. Lançou em 2015 os livros Inclusão em pauta e A aposta (contos).

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