O mundo como um texto a ser desbravado

por Gustavo Melo Czekster (27/03/2017)

Domicio Proença Filho explica temas complexos da teoria literária de forma acessível, sem descambar para o coloquialismo.

“Leitura do texto, leitura do mundo”, de Domicio Proença Filho (Rocco, 2017, 272 páginas)

Entre as muitas classificações possíveis para livros de teoria da literatura, podemos simplificar e adotar uma divisão dualista baseada na sua intenção: existem livros eminentemente teóricos, versando com profundidade sobre temas afeitos à área, e existem obras de teor prático, que funcionam como referência e manual de aplicação de teorias analisadas em outros livros. Reduzindo ainda mais, é possível separar as obras que tratam somente de idéias daquelas que são mais instrumentais, quase pedagógicas. Longe de representar um desmerecimento de algum estilo adotado pelo seu autor, essa divisão demonstra a riqueza do campo da teoria da literatura – e a sua importância para estabelecer mecanismos de análise de textos, viabilizando um posicionamento crítico por parte daquele que comenta a obra com vistas a esclarecer as expectativas de um público leitor.

Em Leitura do texto, leitura do mundo, Domicio Proença Filho transita entre essas duas formas de explicar teoria da literatura. Ao mesmo tempo em que faz um panorama teórico sobre a leitura, a literatura e a teoria literária, ele também realiza uma série de exercícios e demonstrações práticas daquilo que pretende ensinar, usando de extremo didatismo. A maneira com que constrói o texto é elegante, permitindo que o leitor tanto aprenda quanto não sufoque diante de desnecessário academicismo.

A bagagem intelectual e cultural do autor permite com que ele se entregue com generosidade a compartilhar seus ensinamentos com o leitor: Domicio Proença Filho é romancista, poeta, ensaísta, crítico literário, antologista, professor universitário, filólogo, pesquisador, conferencista e produtor cultural, deslocando-se entre várias áreas que abordam a importância da leitura e da escrita na formação da literatura. Com larga experiência no ensino de literatura, constatou a mudança do público que se operou com a cada vez maior evolução tecnológica, tanto que anuncia na apresentação da obra:

No decurso desse trabalho, evidenciaram-se, consensualmente, a partir de manifestações reiteradas, três constatações: a necessidade de uma visão integrada dos inúmeros conceitos relacionados com a escrita e a leitura; a estreita relação entre leitura, conhecimento e repertório cultural; a utilidade da adoção de uma orientação na prática de leitura.

Em função desse constatar-se, nele são explicitadas conceituações e são apresentados roteiros agilizadores da leitura de textos literários e não literários. Sem preocupação com exaustividade. Mais como motivação para uma perspectiva mais abrangente.

É importante destacar que a proposta de Domicio Proença Filho é ambiciosa. Ele pretende, no âmbito de uma única obra, discutir a leitura, a linguagem, a escrita, a literatura e a crítica literária. Cada um desses assuntos poderia gerar não somente um livro, mas uma coleção de obras a respeito. O tamanho da ambição regra a extensão do fracasso ou sucesso de qualquer empreendimento e, no caso de Leitura do texto, leitura do mundo, o autor é exitoso na sua proposta: fazer uma breve introdução e comentário a todos os assuntos, mencionando a teoria em que ele se baseia e, ao mesmo tempo, abrindo espaço para uma análise prática. A título de exemplo – e isso acontece em todas as 271 páginas do livro – destaco o início do capítulo “Literatura, História e Ideologia”:

A literatura é também uma modalidade de arte que envolve dimensões históricas e ideológicas. Insere-se plenamente na história de um povo. Traduz o grau de cultura de uma sociedade. Reflete visões de mundo predominantes na sincronia sociocultural em que se insere. Converte-se em poderoso nutriente do imaginário nacional. É relevante na construção da identidade nacional.

Pensemos em Os Lusíadas, de Luís de Camões. A leitura do texto possibilita, a propósito, algumas depreensões.

O poema sintetiza a história de Portugal, a partir da viagem de Vasco da Gama na descoberta do caminho para as Índias.

Fundamenta-se no antropocentrismo renascentista: revela uma visão de mundo centrada no Humanismo, entendido como interesse pelo ser humano, por tudo que ele pode realizar de alto e glorioso.

Por este trecho, é possível perceber algo do estilo que perpassa todo o livro: frases curtas, parágrafos reduzidos, explicação teórica associada à prática de leitura, linguagem clara. Os títulos dos capítulos revelam a diversidade de assuntos teóricos abordados pelo autor: “O que se entende por Cultura?”, “Cultura e mundo virtual”, “Linguagem e língua”, “Ato de fala, enunciado, frase”, “Literatura e língua”, “Texto literário e conotação”, entre outros. No capítulo 10, Domicio Proença Filho demonstra formas de leitura e análise de textos não literários (exemplificando com obras de Alfredo Bosi, Alberto da Costa e Silva e o padre Antônio Vieira) e de textos literários (sonetos de Camões, trechos de Os Lusíadas, um soneto de Vinicius de Moraes e outro de Cruz e Sousa, abordando ainda formas de leitura de um conto de Machado de Assis e de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro).

É uma leitura agradável e instrutiva, ainda mais em se tratando de um livro que aborda temas teoricamente pesados. Alguns leitores, em especial do mundo acadêmico, poderiam afirmar que Leitura do texto, leitura do mundo é uma obra que não aprofunda nenhuma questão, mas essa não é sequer a sua proposta. Em um mundo que privilegia cada vez mais os textos curtos e diretos, e em que a reflexão fica em segundo plano diante dos memes da internet, existe valor em uma obra que aborda assuntos teóricos sem usar de hermetismo ou de uma falsa erudição que esconde platitudes. Além disso, há grande mérito em explicar temas complexos de uma forma acessível que, sem descambar para o coloquialismo, consegue ser séria e facilmente compreendida por qualquer leitor, acadêmico ou não.

Ao final da leitura, destaca-se a certeza de que, em teoria literária, não existem conceitos estanques. Todos eles se relacionam entre si, em uma relação de constante causa e efeito que se interpenetra e leva a novos patamares de análise. A leitura, a escrita, a teoria, a linguagem, a cultura e a literatura estão em constante diálogo, e não podem ser trabalhadas separadamente. Toda vez que se fala na política de estímulo à leitura no Brasil, tratam de práticas de leitura consideradas de maneira isolada, quando a leitura só consegue se desenvolver se a escrita for capaz de se dirigir a um público leitor, se o escritor expressar – através do seu fazer literário – não somente uma visão de mundo, mas o desejo de transcender a sua época, se a linguagem for adequada ao seu uso, se a cultura for vista como um conjunto de pensamentos e não como uma forma de expressão vazia. Em Leitura do texto, leitura do mundo, Domicio Proença Filho afirma que a cultura é um processo, e não uma consequência e, por meio da leitura de textos, somos capazes de ler e ressignificar o mundo.

Gustavo Melo Czekster

Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.

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