Um relato surpreendente, como é surpreendente para um pai ter de enfrentar o autismo de um filho.
O mais recente livro de Luiz Fernando Vianna é uma autobiografia feita de páginas e cascas. As páginas conferem com o relato do jornalista e da vida com o seu filho autista. As cascas dizem respeito às muitas molduras que o autor, o pai, este homem, vai perpassando e retirando de si mesmo até mostrar-se com a crueza necessária para poder levar o relato adiante e desfazê-lo de qualquer ilusionismo. O espantoso é que isso acontece mais ou menos antes da página 20 do livro.
Dizer que um livro autobiográfico é corajoso, valente ou despido de pudores pressupõe que se conheça a intimidade dos biografados. No mais das vezes, por isso mesmo, é bastante inadequado dedicar-lhes qualificativos porque, admitindo-se que seja impossível adentrar-se na subjetividade de quem quer que seja, são atributos inverificáveis. De certa maneira, toda a autobiografia é também autoficção, e em ambos os estilos parece que a opção por um tom mais realista ou fantasioso é o que vai determinar o impacto da narrativa e seu potencial de emoção, a despeito de suas reservas retóricas e estéticas.
Além de ser um biógrafo experiente que já trabalhou nas histórias de gigantes da música brasileira como João Nogueira e Aldir Blanc, Luiz Fernando tem recursos de sobra para contar uma história difícil como é a sua e de seu filho. Entretanto, é livre de artifícios, com a facilidade de uma letra de música (a observação serve também para informar que os capítulos receberam títulos extraídos da música brasileira), direto e sem firulas, que ele trata do tema da filiação, da aceitação e da vida com o autismo de uma forma desencantadora, mas é justamente aí que está o seu lance de mestre.
Ainda que fosse bastante razoável e compreensível que um autor adotasse o caminho mais fácil (ou menos pedregoso) para abordar seus sentimentos em relação a uma situação tão problemática, é notável a recusa que ele faz de qualquer artifício de sublimação ou compensação. Por certo não há quem imagine que criar e educar um filho diagnosticado aos quatro anos de idade como autista venha a ser um idílio. No entanto, se outra espécie de mensagem é emitida ao mundo social, a interpretação mais corriqueira é a do luto perpétuo e da rejeição, como se fosse possível atravessar a jornada mítica até a aceitação sem sequer mencioná-la, sem encará-la de frente, sem nomeá-la ou entendê-la.
Não é por outra razão que há em muita literatura (mesmo a biográfica) a respeito do tema um esforço quase hiperficcional. Ou seja, talvez por uma questão moral, ou uma necessidade biopolítica ou ideológica (o que vulgarmente vem se conhecendo cada vez mais por “capacitismo”), parece ilícito admitir-se fraquezas. Lidar mal com elas então é, dos crimes, o mais imperdoável.
Na literatura, pelo menos, o imperativo da superação traveste-se e alimenta-se de casos bem resolvidos, normalmente conquistados numa gana divina contra tudo e todos – e entenda-se esse tudo e todos justamente como o mundo social excludente e arraigado na sua normose produtiva e em seus valores, via de regra incompreensíveis e incontornáveis. Trata-se de um paradoxo e, por essas mágicas da vida, há sempre quem tenha a solução comportamental na ponta da língua, muitas vezes mera defecação de normas e exemplos de vida. Autocomplacência, autoindulgência, autoelogio e autoengano são cascas nas quais muitas personagens e pessoas sentem-se melhor para encarar o mundo da exclusão e este é por óbvio um direito que lhes assiste. Porém, tais são as cascas (duras, não?) das quais Luiz Fernando sabiamente despiu-se para escrever um livro em tudo humano e tocante, muitas vezes hilariante e também emocionante. Principalmente emocionante.
Esta, como já é visível, é uma crítica que usa adjetivos. Porém, como se trata de seres humanos e seres humanos não dispensam adjetivos ao pensar e falar, não deve haver nada de mais em qualificar-se um livro assim, com estes recursos. Sem dúvida, todos que o forem ler também o praticarão (mesmo que veladamente) e, certamente, sem coincidência alguma. Aqui então pode ser o momento adequado para voltar-se a um adjetivo já mencionado. Sim, o livro é também corajoso, porque se submete com a mesma retórica à reprovação e à desaprovação. Diante de um relato de vida, ninguém por certo está obrigado a concordar ou admirar, e é por isso que este é mais um acerto na opção do autor em não escamotear nenhum tipo de sentimento. Afinal, o livro não é uma prestação de contas, é uma autobiografia com tudo o que uma vida pode ter de erro e de acerto e para a qual nem um juiz é competente o bastante para avaliar, embora juízes da vida alheia não faltem (e não costumem falhar).
Outro adjetivo que poderia ser empregado ao livro é de que se trata de uma narrativa em muitos aspectos chocante. Não há razão para espanto: a vida humana, quanto mais alguém se aproxima dela, mais chocante parece ser. Requer-se, portanto, uma dose de descompostura para um autor assumir tão rapidamente sua nudez moral, e isto por si só é um gesto de coragem, já que não se pede a contrapartida do leitor. Se isso é ruim ou bom, é um juízo que cada leitor fará de acordo com seu repertório.
Para além de uma crônica de compreensão e superação, tão comuns nos relatos sobre pessoas com deficiência, Meu menino vadio é surpreendente como sempre é surpreendente para um pai ou mãe ter de enfrentar o que até mesmo para a ciência mais avançada é impreciso e desconhecido, como é o autismo, termo que às vezes também é usado como adjetivo – injusta e invariavelmente, em sentido depreciativo. De tudo, certo é que Luiz Fernando tem como fio condutor não uma bela história de superação, de fazer chorar, mas a capacidade de fazer isso ao abusar da franqueza, o que por sorte ainda é permitido aos bons livros. O livro rompeu o distanciamento e o estranhamento que comumente há entre um autista e as pessoas. É duro mesmo, mas por que outra razão alguém escreveria um livro assim?
Lúcio Carvalho
Editor da revista digital Inclusive. Lançou em 2015 os livros Inclusão em pauta e A aposta (contos).
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