"O Espírito da Ficção Científica" não é um bom romance, mas é um Bolaño legítimo.
O lançamento de mais um livro póstumo do escritor chileno Roberto Bolaño (morto em 2003, aos 50 anos) foi marcado por uma polêmica editorial e pessoal nos países de língua espanhola. Depois de anos sendo publicado pela Anagrama, do lendário Jorge Herralde, que o catapultou para a fama, o conjunto da obra bolaniana passou para a Alfaguara, numa transferência envolvendo grana alta. Por outro lado, segundo relatos como o do crítico Ignacio Echevarría, a viúva do escritor, Carolina López, estaria afastando de todo o processo de edição dos livros do marido as pessoas que também tinham contato com Carmen Pérez de Vega, que foi a companheira nos últimos anos de vida de Bolaño. Echevarría escreveu em sua coluna no suplemento El Cultural do jornal El Mundo que “os que administram com toda legitimidade seu legado pretendem, além disso, controlar sua memória”.
Polêmicas à parte, vale dizer que Roberto Bolaño continua sendo publicado por estas bandas através da Companhia das Letras, sendo traduzido por Eduardo Brandão. O espírito da ficção científica é uma das tantas obras inéditas deixadas em cadernos escolares pelo autor de Os detetives selvagens. Desta vez, ao que parece, estava pronta, datada em 1984, porém o autor não quis publicá-la, o que nos remete a outra discussão: até que ponto os herdeiros podem deixar vir à luz os escritos inéditos de escritores falecidos? Sempre nesses casos se pode tomar o exemplo de Max Brod, que não atendeu o pedido do amigo Franz Kafka de queimar suas obras inéditas caso morresse e, por isso, podemos ler hoje obras-primas como O castelo e O processo. No fundo, no fundo, Kafka queria sim que fosse publicada sua obra, caso contrário teria queimado ele mesmo tudo, afinal, estava doente e sabia que tinha pouco tempo de vida.
O caso não é diferente com relação a Bolaño, que desejava manter seus filhos numa tranquilidade financeira com o recebimento de direitos autorais depois de sua morte que era iminente devido a uma doença hepática. Nós, leitores, agradecemos, principalmente os, digamos assim, iniciados ou os já em estágios mais avançados na bolañomania, pois O espírito da ficção científica não é um bom romance, mas é um Bolaño legítimo. Há trechos memoráveis, porém, no conjunto, é um amontoado de capítulos de uma história que não se desenrola, não avança e termina de forma aberta demais, incompleta. Muitas das ideias foram desenvolvidas em outras obras, por isso o romance é para os que já têm familiaridade com os demais romances e contos.
Na capital do México, nos anos 70, vivem numa pequena pensão os jovens Remo e Jan, o primeiro um aspirante a poeta e o segundo um aspirante a escritor de ficção científica. Remo transita entre oficinas literárias, livrarias e festas, enquanto Jan fica trancado no seu quarto escrevendo cartas para os autores do gênero literário que cultua. Numa delas, para Ursula K. Le Guin, afirma: “Por que escrevo estas cartas?… Talvez só para incomodar, talvez não… Talvez tenha ficado louco de tanto ler romances de ficção científica.”
Os dois são, de certa forma, a representação do próprio Bolaño nos tempos em que buscava viver somente de literatura, escrevendo para pequenas publicações e para concursos literários. Jan chega a assinar desta forma uma das cartas: “Jan Scherella, dito Roberto Bolaño”. Bolaño, diga-se, já se declarou fã de Philip K. Dick. No meio disso, há os temas frequentes do escritor, melhor desenvolvidos nas obras posteriores, como as paixões arrebatadoras, por exemplo, a de Remo por Laura; o roubo de livros, sendo o amigo José Arco “contumaz nesses misteres”; a busca detetivesca, nesse caso em descobrir o mistério sobre a capital do México ter lugar para mais de 600 revistas literárias (busca que não tem continuidade, uma das falhas da obra); e as críticas a poetas, aqui sobrando até para os nosso concretistas:
— Por que não quer que nos leia um poema?
— Não adivinhou? É seguidor dos irmãozinhos Campos.
No prólogo, que não consta na edição brasileira, Christopher Domínguez Michael compara o baú de Bolaño com o de Fernando Pessoa, que também deixou dezenas de materiais inéditos, e diz parecer infinita a capacidade do escritor em surpreender do além-túmulo. Para quem, como eu, nutre certa devoção inexplicável pelo autor de 2666 (cheguei a transformá-lo em personagem num conto do meu novo livro, Cacos e outros pedaços, imaginando que havia visitado meu quarto quando eu era adolescente nos anos 90, sendo ele ainda desconhecido, e transmitido as minhas primeiras lições literárias), tudo é bem-vindo. Para o leitor não iniciado, no entanto, vale sugerir começar pelas outras obras. Putas assassinas, livro de contos também lançado pela Companhia das Letras, é um bom ponto de partida.
Cassionei Petry
Professor e escritor. Seu novo livro é Cacos e outros pedaços.