Luiz Vilela aborda em sua obra mais recente o politicamente correto e as disputas de ego na universidade.
Dos grandes contistas surgidos nas décadas de 50, 60 e 70, Luiz Vilela é um dos poucos que continuam escrevendo e mantendo regularidade na qualidade dos textos. Rubem Fonseca, por seu turno, anda deixando a desejar nas últimas obras, bem como Dalton Trevisan, que vem repetindo o mais do mesmo. Outros escritores praticamente deixaram de escrever, como Lygia Fagundes Telles, que apenas relança contos velhos em novas coletâneas. Vilela vem escrevendo boas obras e recebendo alguns prêmios, porém não alcança a repercussão merecida. Pela sua importância, cada obra dele deveria ser esperada com expectativa.
O filho de Machado de Assis é sua mais recente novela. É importante frisar o gênero. Talvez por causa da televisão, poucos chamam de novela à narrativa que, na tradição da literatura brasileira, tem extensão média, entre o conto e o romance. Já vi muitos romances com menos páginas do que essa obra por aí. Luiz Vilela cultiva o gênero, escrevendo obras-primas como O choro no travesseiro, mas é consenso que o autor de Tremor de terra é muito melhor como contista.
Por ser uma obra curta, cada detalhe da narrativa é importante. É bom que não se espere um desenvolvimento maior do enredo, pois isso pode decepcionar o leitor. O não-dito é importante, apesar de em palestras o escritor ter declarado que o que está nos seus textos está ali, sem nada escondido. Não confiem nele. O nome das personagens, por exemplo, não foram escolhidos a esmo. O narrador se chama Telêmaco, nos remetendo ao filho de Ulisses na Odisseia, de Homero. Na epopeia, o personagem saiu de Ítaca à procura do pai, que não voltara da Guerra de Troia. Na novela, o jovem busca no professor Simão a figura de um pai. O nome do professor lembra o protagonista de O alienista, de Machado de Assis. Investigando a loucura, o cientista Simão Bacamarte interna todos os habitantes da vila de Itaguaí, depois os solta, considerando que ele é o único louco do lugar. Podemos, então, desconfiar da sanidade mental do professor da novela de Vilela.
Num sábado pela manhã, o professor Simão chama pelo telefone o seu ex-aluno Mac, apelido de Telêmaco (preciso dizer para repararem nas três primeiras letras de Machado?), avisando que tem algo muito importante para falar com ele. Mac iria à praia com sua namorada, porém julga mais importante atender ao pedido do professor e adiar o divertimento para a tarde. Na casa do mestre, o que se segue é um enredo composto basicamente por diálogos, técnica na qual Luiz Vilela é insuperável. O tema principal da conversa é a descoberta que o professor faz em uma pesquisa na Biblioteca Nacional: Machado de Assis teria tido um filho, o que contraria seus dados biográficos e a clássica frase que encerra o romance Memórias póstumas de Brás Cubas: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.
Premissa semelhante foi utilizada por Gustavo Bernardo em A filha do escritor, também com várias referências machadianas nos nomes das personagens, porém com mais complexidade no enredo. Mais recentemente, Silviano Santiago, no romance-ensaio Machado, retoma as especulações sobre Mário de Alencar, filho de José de Alencar, ser na verdade filho do Bruxo do Cosme Velho. Para muitos, a possibilidade de Bentinho não ser o pai de Ezequiel em Dom Casmurro foi uma pista deixada pelo escritor, assim como há desconfiança quanto à escolha de Mário de Alencar para a Academia Brasileira de Letras. Consta que este seria também epilético, como Machado. Silviano, por seu turno, parece discordar dessa especulação. Já em O filho de Machado de Assis, Mac pergunta para o professor se descobriu a confirmação dessa história e Simão responde: “Não, não, aquilo é fofoca; isso aqui é real, é fato.”
Acontece que os diálogos vão se sucedendo e o professor não revela os detalhes ao ex-aluno, com receio de que sua descoberta viesse à tona pela mão de outro, numa clara crítica às disputas de ego na universidade:
“O mundo acadêmico: o que é o mundo acadêmico? O mundo acadêmico é isto: sob as luvas de pelica, as garras da fera; por trás dos sorrisos, as presas, prontas para morder. O mundo acadêmico é isso.”
Vilela ainda critica a praga do politicamente correto que infesta o uso da língua, quando, por exemplo, revela mais um detalhe sobre o filho de Machado:
“Ah, agora outra bomba: o moleque era negro.”
No que Mac interpela:
“Afrodescendente, professor…”
E mais adiante:
“Lembremo-nos de que Machado já era bem-visto pela família de Carolina pelo simples fato de ser mestiço.”
“Mestiço, não, professor: racialmente miscigenado.”
Num primeiro momento, me pareceu que Mac era o chato de plantão, mas depois, em outras tentativas de correções ao professor, ficou claro que eram intervenções irônicas.
A novela tem alguns deslizes, por exemplo, quando Simão diz ser uma incrível coincidência sua descoberta ter acontecido próximo das comemorações do centenário de Machado de Assis. Logicamente, estaria se referindo ao centenário da morte do escritor, pois o enredo se passa em época recente, portanto, em 2008, e não em 1939. Nada que suplante, porém, seus acertos.
O final pode parecer apressado e até previsível. No entanto, a condução dos diálogos, as frases sarcásticas e as tiradas engraçadas e irônicas são a essência dessa obra, tornando-a uma leitura divertida. Literariamente, pode-se dizer que Luiz Vilela é ele mesmo um dos tantos filhos de Machado de Assis, assim como nós, que o lemos, afinal ele, diferentemente de seu personagem Brás Cubas, transmitiu a muitos escritores e leitores o legado da sua e da nossa miséria.
Cassionei Petry
Professor e escritor. Seu novo livro é Cacos e outros pedaços.