O que faz com que um poema perdure no tempo é sua capacidade de manter um diálogo contínuo com os leitores.
A linguagem poética não é apenas um modo de expressão, é também um instrumento de prospecção da realidade. Para além de sua função comunicativa, a linguagem é a instância mediadora entre a imaginação, sensações, intuições, emoções etc. e o pensamento comunicável. Ao alterarmos o uso que fazemos da linguagem, mudamos a maneira como apreendemos e damos forma mental à nossa atividade interior e ao mundo exterior. No caso da poesia, há uma desautomatização da linguagem verbal, que, em seu uso convencional, possui como finalidade transmitir uma mensagem do modo mais eficiente possível, buscando a clareza e evitando ambiguidades. Quando empregamos não convencionalmente os signos verbais, no entanto, criamos uma fresta na casca de rotina que torna a realidade opaca, uma nova perspectiva que permite captar as coisas sob ângulos insuspeitados.
Na desautomatização que a poesia opera, as figuras de linguagem assumem um papel fundamental. São elas as arapucas com as quais capturamos algum aspecto surpreendente do real. O crítico e poeta mexicano Octavio Paz, em Os filhos do barro, destaca dois tipos delas, capazes de fundar visões de mundo distintas: as figuras de analogia (como símiles e metáforas) e a ironia.
Nas figuras analógicas, temos a descoberta de afinidades e semelhanças entre seres que, muitas vezes, não parecem possuir relação alguma entre si. Trata-se de encontrar, na configuração dos seres, um paralelismo estrutural que, quando bem traçado, tem o poder de iluminar tais seres, dando-lhes novo significado ou revelando-lhes um significado mais profundo. No caso da metáfora, estabelece-se uma relação de identidade entre dois termos diversos entre si, embora não excludentes e contraditórios (pois daí entraríamos na seara do oximoro), na qual um deles joga luz sobre alguma faceta interessante do outro.
Já na ironia, em que enunciamos uma coisa querendo dizer o seu oposto, geralmente com intenção humorística, podemos vislumbrar uma dissociação entre significado e significante, que denuncia a arbitrariedade inerente ao signo linguístico e, assim sendo, sua natureza convencional. Num enunciado irônico, é preciso estar sempre desconfiando das palavras, rastreando seu real significado, brincando nas sombras do signo. A ironia nos ensina a ver além das aparências para captar, quem sabe, algo de mais “essencial” nos fenômenos (às vezes, para descobrir que “o sentido íntimo das cousas” é não haver “sentido íntimo nenhum”) — ela nos obriga, em suma, ao distanciamento crítico.
Um dos casos mais exemplares do uso da ironia está no capítulo “O verdadeiro Cotrim”, de Memórias póstumas de Brás Cubas, escrito por Machado de Assis. Em tal capítulo, Brás Cubas, após reconciliar-se com o avarento e ambicioso cunhado (Cotrim), resolve escrever uma defesa deste contra as acusações que lhe são dirigidas pela opinião pública. Entretanto, quanto mais o defunto autor se esforça em defender o cunhado, mais detalhes sórdidos ficamos sabendo da biografia e da personalidade do dito cujo. Se trata os escravos de maneira brutal, é porque se acostumou com isso nos tempos de traficante negreiro; se faz caridade com o objetivo principal de torná-lo público, é porque pretenderia servir de inspiração para outras pessoas. Assim, o “verdadeiro Cotrim”, aquele por trás da imagem construída pelos supostos maledicentes, revela-se, ao final, uma versão piorada de tal imagem, ainda mais hipócrita e sem escrúpulos.
Para Octavio Paz, o que caracteriza a literatura romântica e a que lhe sucede — e também a visão de mundo do homem moderno — é essa oscilação entre uma perspectiva analógica, por meio da qual se procura resgatar a noção do mundo como uma unidade coerente, e uma perspectiva irônica, que acusa a irredutibilidade do real a qualquer integração totalizante.
Nas últimas décadas do século XX, na poesia brasileira, assistiu-se à ascensão de outra figura de linguagem que, em determinadas vertentes, assumiu uma posição, se não digo predominante, ao menos de bastante relevo; refiro-me à paronomásia, popularmente conhecida como trocadilho. A paronomásia é uma combinação de palavras que apresentam semelhança fônica e/ou mórfica entre si, mas com significados distintos. Alguns exemplos podem ser tirados do poema “As rosas do cume”, de Laurindo Rabelo, poeta de nossa segunda geração romântica; fiquemos com apenas um:
No cume daquela serra
Eu plantei uma roseira.
Quanto mais as rosas brotam,
Tanto mais o cume cheira.
“O cume cheira” = “o cu me cheira”.
A chamada “geração mimeógrafo” da década de 1970, também conhecida como “poesia marginal”, elegeu a paronomásia como um de seus traços característicos. Alguns títulos já o demonstram, como Chá com porrada, de Nicolas Behr, e La vie en close (brincadeira com a famosa canção “La vie en rose”), de Paulo Leminski. Deste último, destaco do livro não fosse isso e era menos/ não fosse tanto e era quase:
ameixas
ame-as
ou deixe-as
Além da brincadeira com o slogan da ditadura militar (“Brasil, ame-o ou deixe-o”), rebaixando a retórica ufanista ao plano do cotidiano mais ordinário, o autor explora as semelhanças fônicas entre “ameixas”/“ame-as” e “ameixas”/“deixe-as”. Em Ideolágrimas (o título do livro já é um constructo verbal de natureza trocadilhesca, que aglutina as palavras “ideogramas” e “lágrimas”), encontramos:
por um fio
o fio foi-se
o fio da foice
“Foi-se” = “foice”. Temos também a brincadeira da expressão “por um fio”, de contornos conotativos, com o literal “fio da foice”.
Podemos nos perguntar: se a linguagem poética pode ser um instrumento de prospecção da realidade, o que poemas assim nos mostram? Certamente, um flash que, pela combinação espirituosa e inesperada de palavras, é capaz de iluminar por alguns instantes um fragmento do cotidiano; e nada mais. É como um fósforo que, uma vez riscado, torna-se imprestável. Quantas vezes poderemos reler o poema e ainda experimentar o humor e a surpresa da primeira leitura? Quantas vezes é possível ouvir a mesma piada sem que ela perca completamente a graça? Vejam bem, não estou contestando a eficácia nem a legitimidade da paronomásia como figura de linguagem na poesia, mas destaco a efemeridade de um poema — ou de uma poética — que faça do trocadilho sua razão de existir.
Há poemas que, por sua complexidade e/ou profundidade, cada vez que voltamos a eles descobrimos algo novo, seja uma nuance, seja um detalhe formal, seja uma possibilidade de leitura. Outros, não necessariamente tão profundos, encantam-nos por seu poder sugestivo: sempre que os lemos, revisitamos determinado estado de espírito, uma atmosfera de reminiscências e associações. Ler poesia é, basicamente, reler poemas até o ponto em que eles se integrem ao tecido de nossa existência, constituindo um pouco do que somos. Um bom poema consegue iluminar diferentes contextos. Mas qual o sentido de se reler várias vezes um poema que se resume a um chiste, a um jogo de palavras e tão somente a isso? Nada contra chistes e jogos de palavras (inclusive, adoro!), porém, parece-me que a poesia pode — e talvez deva — ser algo mais do que isso.
Pedro Marques inclui esse tipo de poesia, que faz da paronomásia seu elemento fulcral, na vertente da poesia contemporânea chamada por ele de “poética da sacada”, entendendo por “sacada” um “deslocamento” de uma palavra ou ideia de seu contexto habitual, gerando surpresa. Como já vimos, isso é inerente à poesia e às figuras de linguagem; a diferença é que, enquanto na poesia em geral, tal deslocamento integra uma unidade maior (um “corpo textual”, nas palavras de Marques), na poética da sacada, ele se autonomiza:
Sacadas como metáforas sem todo linguístico ou intelectual, pilhas de pernas e braços sem poemas em corpo. Edifício retórico-poético arruinado. Sacada como unidade antepoema, ante-livro, provocando alguma alteração. Mas milhões de alfinetes cortam como uma só espada? O legado das sacadas, a produção mais popular de hoje, talvez seja funcionar como usina de reciclagem tropológica. Poetas conseguem selecionar, reaproveitar, refundir simulacros de corpos ainda que perecíveis e heterogêneos. A beleza do escombro, do retalho, do caco.
É possível enxergar na poesia do trocadilho da geração mimeógrafo e em seus desdobramentos nas décadas seguintes uma continuidade com o experimentalismo linguístico e formal da poesia concreta, embora num tom mais descontraído e coloquial, e sem aquele afã sistematizador e teorético que caracterizava o grupo que se formou em torno do legado da Revista Noigandres.
Parece-me que, na segunda metade do século XX, a crescente especialização acadêmica dos poetas, mesmo entre aqueles que se mostravam refratários ao ambiente universitário, propiciou uma leitura equivocada do formalismo russo, na qual a linguagem poética coincidiria com a função poética da linguagem. Segundo Roman Jakobson, a função poética da linguagem ocorre quando a ênfase de um enunciado recai sobre o código com base no qual ele foi produzido (no caso, a linguagem verbal) e não tanto na mensagem que se deseja transmitir, ou seja: as construções sintáticas e as palavras, em suas dimensões fonética e morfológica, assomam ao primeiro plano da comunicação, dando-se maior destaque ao significante do que ao significado. Contudo, nem a linguagem poética se restringe à função poética da linguagem (visto que a poesia pode fazer uso das demais funções), nem a função poética se limita ao campo da poesia, sendo muito utilizada na publicidade e no humor. O que ocorre é que, na poesia, justamente por sua natureza lúdica, a função poética costuma ser empregada com maior frequência. Quando confundimos as duas coisas, perdemos de visto algo importante: a matéria-prima da literatura não é a linguagem verbal, esta é apenas um dos meios pelos quais podemos dar forma estética à experiência humana. É de tal experiência, em suas diversas dimensões (histórica, social, psicológica, espiritual etc.), que é feita a arte em geral e a literatura em específico.
Mas o que podemos dizer da paronomásia como figura de linguagem? Nela, estabelece-se uma relação entre dois termos que é da ordem do fortuito e do arbitrário. Não há qualquer semelhança ou paralelismo que encontre lastro empírico, existencial ou psicológico. Trata-se de uma associação baseada em aspectos meramente circunstanciais. Em vez de encontrar afinidades ocultas entre os seres, como na analogia, ela apenas elide as diferenças; em vez de apontar a divergência entre significante e significado, a fratura entre a aparência e a essência das coisas (ou, num vocabulário materialista, entre a ideologia e a práxis), como na ironia; ela pretende conciliar o inconciliável. A paronomásia é um tipo de truque de prestidigitação linguístico, um ilusionismo poético. À primeira vista, enche os olhos, mas não nos diz nada sobre nossa relação com o mundo ou sobre nossa vida interior. É uma relação entre signos, somente.
Com isso, não pretendo afirmar que não haja espaço na poesia para o elemento puramente lúdico, para pirotecnias e virtuosismos de toda ordem, para o ornamental. Pelo contrário. Esse tipo de expediente ajuda a explorar os limites expressivos da linguagem verbal, ampliando, assim, as virtualidades desta em sua tarefa de abarcar os inúmeros aspectos da experiência humana. Entretanto, o problema surge quando aquilo que era para ser acessório, suplementar, converte-se no principal, na finalidade última da poesia, pois o que faz com que um poema perdure no tempo é menos os efeitos imediatos que ele propicia do que sua capacidade de manter um diálogo contínuo com os leitores. Os efeitos podem ser um bom atrativo às primeiras leituras, mas é preciso que, depois de acostumado a eles, o leitor encontre algo mais ali, algo que consiga sustentar seu interesse.
Talvez não seja por acaso que, numa época na qual o imediatismo da linguagem publicitária tornou-se uma espécie de código universal, a paronomásia, função poética em estado puro, tenha se tornado um índice hegemônico de poeticidade. A disseminação da linguagem publicitária nos mais diversos meios teria tornado os poetas conhecidos pelo uso recorrente da paronomásia mais assimiláveis ao grande público. Indo além: o trocadilho, como expediente poético, presta-se como nenhum outro a se tornar meme e a viralizar nas redes sociais. Felizmente, porém, a poesia brasileira contemporânea não se resume a um desfile interminável de trocadilhos e outros truques poéticos semelhantes. Há muita coisa com potencial de permanência que poderá transmitir às gerações futuras o que foi estar vivo numa época como esta, nutrindo-se de uma cultura como a nossa.
Emmanuel Santiago
Doutor em Literatura Brasileira pela USP. Autor de Pavão bizarro (poesia) e A narração dificultosa (crítica).
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