O PSOL virou PSOLula

por Lucas Baqueiro (08/03/2018)

“Linha auxiliar uma ova!”, berrou Luciana Genro em um debate de 2014.

1. Epitáfio de um partido

Desde as eleições de 2014, o PSOL vem se distanciando de sua posição original. Nasceu em 2004, como consequência da expulsão de parlamentares do PT, como a então senadora Heloísa Helena, e os deputados federais Babá, João Fontes e Luciana Genro, por conta de sua posição contrária à reforma da previdência promovida pelo governo Lula, no ano anterior, e o distanciamento do partido governista do socialismo como objetivo final.

Em 2005, destacou-se fortemente durante a crise do Mensalão, com forte discurso em defesa da accountability e da transparência. Inúmeros parlamentares e filiados históricos do Partido dos Trabalhadores migraram para a legenda. Àquela altura, o PSOL fazia uma oposição mais aguerrida ao governo Lula do que o PSDB e o DEM. Muito por isso, foi alçado à terceira colocação nas eleições presidenciais de 2006, com a candidatura de Heloísa Helena. Seguiu, até a próxima eleição, na mesma toada: um partido oposicionista à esquerda.

Em 2010, durante o primeiro turno, manteve a posição de partido à esquerda do petismo, com a candidatura de Plínio de Arruda Sampaio (1930-2014). Plínio destacou-se durante os debates como uma verdadeira metralhadora, batendo impiedosamente em José Serra, Marina Silva, e sempre tendo Dilma Rousseff como alvo preferencial. Ninguém se esquece, por exemplo, de como Plínio fez Dilma deixar de sorrir com uma pergunta sobre Erenice Guerra: “você foi conivente com a corrupção ou incompetente? Se eleita, vai ter competência para nomear seus auxiliares, ou vai nomear muitas Erenices?”. Apontava sempre o governo petista como uma verdadeira continuidade das políticas econômicas do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), como coisas diferentes em embalagem, mas iguais no conteúdo.

Todavia, o PSOL começou a desandar naquela mesma eleição. Depois de ter trazido um dos melhores debatedores desde a redemocratização, algo extremamente positivo, criou um dos dispositivos mais covardes: o tal do “voto crítico”. Diante da escolha entre Serra e Dilma, o PSOL recomendou, àquela altura, que se votasse “criticamente” em Dilma – como se fosse possível existir um voto crítico. Foi como se dissesse: “estou votando num candidato corrupto, estou votando num candidato fabricado pela máquina da criminalidade, mas não tenho nada a ver com isso”. Uma oposição que cessava de ser oposição, portanto.

À medida que o governo Dilma avançava – e as denúncias e escândalos de corrupção se ampliavam – o PSOL foi se transformando numa linha auxiliar do PT. Paulatinamente, a esquerda radical chic, a esquerda de boutique, foi se agregando àquele partido que se dizia ter originado na luta popular. Marcava votos em lugares da Zona Sul carioca, mas não conseguia pontuar nas comunidades e nas favelas. O PSOL ganhou o tom de partido da classe média-alta com culpa travestida de consciência social.

“Linha auxiliar uma ova!”, berrou Luciana Genro, durante um debate presidencial em 2014, apontando o dedo para o candidato Aécio Neves. Mas o que foi a candidatura de Luciana Genro, senão uma candidatura auxiliar, intencionalmente ou não, à reeleição de Dilma Rousseff? Brandamente, para marcar passo, rugia na direção da presidente que buscava manter a faixa presidencial; mas mordia e atacava, com muita força, a candidatura de Marina Silva, enquanto a ex-senadora acriana despontava para o segundo turno, e tentava desconstruir com idêntica verve a candidatura tucana.

Chegado o segundo turno, o PSOL não hesitou em lançar mão da estratégia – mais uma vez, covarde – do “voto crítico em Dilma Rousseff”. Daquele ponto em diante, não havia mais oposição, mas uma aliança firme, totalmente involucrada numa crítica que não existia.

Passada a eleição, o impeachment de Dilma tornava-se uma possibilidade. A Operação Lava-Jato começava a ganhar muita força, prendendo empreiteiros, executivos e parlamentares governistas. A reação do PSOL, diante desses eventos, não foi a mesma de 2005, quando do escândalo do Mensalão. Pelo contrário: abraçou-se ao mastro do navio governista que afundava. Do PSOL é que ecoavam as gritas mais contundentes de “golpe”, pelas vozes de Ivan Valente e Jean Wyllys na Câmara dos Deputados.

Avançando as denúncias contra Luiz Inácio Lula da Silva, a cujo governo o PSOL fez oposição em quase sua inteireza (o governo durou de 2003 a 2011, e a oposição do grupo que formaria o PSOL iniciou-se ainda no fim de 2004), o partido alinhou-se inteiramente ao lulismo. Dos órgãos partidários, de seus parlamentares, de suas correntes internas, com exceção de uma minoria, não se ouvia nada mais além da repetição das hilárias teorias conspiratórias: de que a condenação de Lula por corrupção era prova maior da vigência de um estado de exceção, do fim das garantias democráticas e, claro, de que tudo era obra dos americanos.

A partir desse ponto de psicodelia conspiratória é que começam a convergir PSOL e Guilherme Boulos. Nesse ponto, o PSOL se transforma completamente, nas palavras de Plínio Sampaio Jr., em “um puxadinho do PT”.

2. Onde Boulos e o PSOL convergem

Guilherme Castro Boulos não é alguém que mereça exatamente uma biografia dedicada. Resumidamente, trata-se de uma fraude política. É um sem-teto que nunca foi sem-teto. É um psicanalista que nunca clinicou, de quem não se tem notícia de ter atendido paciente, de quem não se sabe ter sido analisado algum dia. É saudado como a “esquerda lacaniana”, quando nunca passou da “esquerda lacradora”. Não é um político, mas alguém que jamais superou a fase do Diretório Central dos Estudantes. Posa de periférico, mas nasceu e mora na zona mais rica da cidade de São Paulo, frequentando mal-e-porcamente as barracas dos sem-tetos por fetiche e para bater ponto.

Boulos diz-se como não-petista, mas adota integralmente a loucura conspiratória de que há um golpe e um estado de exceção, de que o governo Temer viola todos os direitos humanos, de que há de se defender o inocente Lula, cuja candidatura tem de ser defendida nas ruas. Boulos diz que não adere ao programa petista, mas esteve presente no comício realizado no Palácio do Planalto, em 18 de agosto de 2015, proclamando que colocaria “o povo sem-teto nas ruas para defender o governo de Dilma Rousseff”.

Boulos diz-se candidato, mas pôr-se-á nas urnas para defender, nos debates e nas mídias, a canonização de Luiz Inácio Lula da Silva. Diz-se defensor do “povo trabalhador”, mas jamais assinou uma carteira, jamais assinou um contrato de trabalho que não fosse em virtude de sua militância política. Diz ser a voz do povo, mas com o povo não tem nenhuma parte, nem em origens, nem em renda, nem em interesses políticos e econômicos.

Boulos não é nada além de um lugar-tenente do lulismo.

O PSOL, por sua vez, era algo. Era um partido sólido, laudado como “oposição a tudo que está aí”, que não poupava ninguém, defendendo com muita consistência sua orientação política socialista – da qual discordo diametralmente, de cabo a rabo, vale lembrar. Era um partido honesto, respeitável: podia-se discordar do seu radicalismo, podia-se concordar que ele demoliria o Brasil e o afundaria numa ditadura, como eu acredito; mas era um partido digno do nome.

Agora, à semelhança de Guilherme Boulos, o PSOL tornou-se outro braço vulgar do lulismo. A candidatura Boulos é um encontro final do partido com aquilo que se tornou: a antítese do PSOL original.

Alguém pode argumentar: mas a participação de Sônia Guajajara não dá um cariz popular? Alçada a parceira de chapa de Boulos, Sônia será um mero troféu. Outros dirão: não seria um exagero dizer que não há povo, não há cheiro de povo, não há substância de povo nessa candidatura? Boulos não representa os movimentos sociais organizados? Não. Boulos não representa outra coisa além do peleguismo, além do movimento social que passou a cronicamente padecer de lulismo e de dilmose, após junho de 2013. A partir do momento em que certos movimentos sociais distanciaram-se do que o povo queria – o povo contra Dilma, o povo contra Temer, o povo contra o status quo – não há mais qualquer cariz de popular neles, só mero adesismo e cooptação.

Os pré-candidatos Plínio de Arruda Sampaio Jr., Nilton Ouriques e Hamilton Assis, os vereadores Babá (ex-deputado federal, fundador do PSOL) e Renato Cinco, clamam que a transformação do PSOL em puxadinho do PT é coisa ilegítima, imposta. Mas é legítima sim. Representa o que a maioria do partido quer. As correntes que pregam um PSOL independente, um PSOL raiz, não representam um quinto dos filiados. Não vencem e não podem vencer as prévias que exigem ser realizadas, além do que a conferência eleitoral empoderada para alçar Boulos à posição de único pré-candidato detém legitimidade conferida por voto.

Acreditam os apoiadores da candidatura de Boulos, maioria do partido, de que essa candidatura é de reencontro com o povo. Acreditam que o carisma de Boulos pode levar a uma inserção muito maior junto aos movimentos sociais, onde o PSOL hoje não tem muita presença. Acreditam que podem conseguir melhores resultados do que em 2014 e em 2010, talvez chegando perto da votação que recebeu Heloísa Helena em 2006. Acreditam que Boulos partilha da mesma centelha carismática, quase divina, de Lula. Ledo engano.

Fora da bolha da decadente esquerda necrogovernista, ninguém acredita em tópicos como golpe, estado de exceção, ditadura de toga, avanço do fascismo, inocência de Lula. Prova inconteste disso foi a devastadora derrota que Marcelo Freixo sofreu para o bispo Marcelo Crivella, nas últimas eleições municipais do Rio de Janeiro: o povo da periferia preferiu o candidato que falava em “cuidar do povo carioca” – Crivella, curiosamente ex-ministro de Dilma – ao candidato que falava em “golpe”. Freixo mal pontuou fora da Zona Sul do Rio, e seus votos representaram mais a rejeição a Crivella, à Igreja Universal do Reino de Deus, a Sérgio Cabral e ao PMDB do que propriamente crença na plataforma do Partido Socialismo e Liberdade.

Optando por Boulos, uma candidatura inorgânica, o PSOL comete o mesmo erro primário do Rio – só que em escala maior. Compromete, inclusive, a chance de ampliar a bancada psolista nos legislativos federal e estaduais. E enterra de vez a posição de outrora, de partido defensor da integridade e da transparência na política, pondo como pleiteante à Presidência da República um papagaio que só consegue proclamar a inocência de um corrupto condenado.

Diz-se que as correntes minoritárias do PSOL, hoje muito mais próximas do PSTU do que o próprio partido, podem com ele rachar. Proclama-se que pode ser o fim do PSOL. Não é verdade. O PSOL continuará existindo: só que como um novo partido, equidistante da integridade e do bom-senso político, longínquo das suas origens, mais linha auxiliar do lulismo do que nunca.

O PSOL morreu, para dar origem ao PSOLula. Lê-se no epitáfio: aqui jaz o PSOL, falecido em decorrência das complicações da dilmose crônica, vítima do parasitismo oportunista de Lula.

Lucas Baqueiro

Bacharel em Humanidades pela UFBA. Editor de política e atualidades da Amálgama.

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