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Como não ser um filósofo e duvidar do óbvio

por Arthur Grupillo (18/03/2018)

Ridicularizar é uma arte! Requer um senso apuradíssimo para o real e para o falso, que é raro hoje em dia.

 

How to Lose Friends & Alienate People (Como perder amigos e afastar pessoas), de dez anos atrás, é um de meus filmes preferidos. Disse isso uma vez aos meus alunos, que me olharam como alguns dos personagens de How to Lose Friends & Alienate People olharam Sidney Young quando ele disse, no meio de um monte de pessoas inteligentes, que Con Air, uma dessas histórias sobre um avião transportando prisioneiros, era o maior filme já realizado. Sidney Young é o tipo de cara inteligente demais para ser professor de filosofia (no filme ele é filho de um e tem um diploma de mestrado na área), mas prefere dedicar-se ao jornalismo de celebridades. Eu entendo perfeitamente isso! Mas não sou inteligente como Sidney Young. Sou professor de filosofia mesmo…

Mas fiz faculdade de jornalismo. E certo dia, quando meu bigode ainda nem era um bigode, quis ter minha própria grana e comecei a procurar estágio. Pois bem, tinha uma vaga numa revista de fofoca. Eu liguei. Fui lá, num apartamento nada chique no bairro pernambucano de Boa Viagem, e fiz a entrevista. Naquela época, eu estava longe de saber como me vestir ou me portar. Ia para a universidade de chinelos e bicicleta, e torcia para o ipê amarelo que tinha na entrada do campus estar florido quando eu passasse, e para o chinelo não agarrar na corrente da bicicleta.

Policiais me abordaram uma vez, sem maiores consequências. Assustaram-se com meu modo de falar, acho, que não compactuava com meu modo de vestir, assim como o livro suado não compactuava com o modo como eu o trazia enfiado na bermuda. Pois bem, lógico que não fiquei com a vaga. Mas tive a cara de pau de ligar de novo e perguntar se seria minha. Que pena, poderia ter sido o início de uma carreira como a de Sidney Young. Eu teria sido lançado para dentro de um mundo ao qual definitivamente eu não pertencia, mas podia pertencer só de sacanagem, só por diversão, porque se divertir é o que pessoas inteligentes fazem. Elas não fazem teses nem dão aulas, supostamente. Mas segui no jornalismo, depois na filosofia, fiz tese e dou aulas. Sou menos inteligente do que pensava.

Sigo tentando me divertir, é verdade, desse jeito esquisito. Não sou exatamente um cara divertido, mas também não sou um casmurrão. O que me consola é que eu acho que perco amigos e afasto pessoas o suficiente. Não trago ódio no coração. Se um dia senti algo parecido com ódio foi por puxa-sacos em geral. E realmente gosto daquele filme, não é sacanagem não. Sei, mesmo sem saber muito bem, que é uma paródia, na verdade é uma adaptação de um livro que é uma paródia, de um famoso livro chamado Como fazer amigos e influenciar pessoas. Um best-seller que deve estar na milésima edição.

Pois é. Eis que, um dia, eu compro na Estante Virtual um livro com o título pomposo de A Viena de Wittgenstein, sobre a vida cultural dessa cidade e sua importância na formação desse grande filósofo, blá blá blá… Ok. O vendedor me manda um e-mail, depois um whatsapp, pedindo depressa que eu recusasse a entrega da encomenda pelos correios, dissesse que não tinha ninguém em casa, porque assim o pacote voltava para o livreiro sem custos. Só que eu moro em prédio, expliquei isso a ele, e não tinha controle sobre o que a portaria recebia, nem podia dar plantão lá por causa disso, me desculpe. De qualquer modo, avisei na portaria, mas era muito complicado dizer que um morador não estava, pois exatamente para isso é que existem portarias, entre outras coisas, para receber coisas de alguém que não está. Recebi.

O vendedor não se aborreceu, me entendeu, e me enviou o livro certo. Disse gentilmente que eu não me preocupasse com o livro que veio errado, e que eu ficasse com ele, como um brinde pelo inconveniente causado. Eu avisei que doaria a uma biblioteca pública. Ele não continuou o diálogo, claro, não estava nem aí para o que eu ia fazer com o livro. E sabe o que aconteceu? Bom… Não doei nem sei o que fazer com o livro, até agora. Não sei como são essas experiências aí de comprar um livro surpresa que você só vai saber qual é quando abrir a caixa, mas acho que acabei fazendo isso sem querer, e a experiência foi a seguinte. Abri o pacote de Como fazer amigos e influenciar pessoas (51ª edição, brasileira, revista). Foi um misto de frustração e entusiasmo. Abri o pacote e… Que porcaria! E ao mesmo tempo finalmente eu ia saber o que tinha de tão interessante neste livro, cujo conteúdo animou milhões de leitores e cuja paródia era um de meus filmes preferidos. Comecei então a ler.

Poucas vezes passei por experiência tão desagradável e angustiante, aflição mesmo. Quanta obviedade dita de forma espetacular. Quanto conselho bobo dado de modo sábio. Vários conselhos que poderiam ser qualquer conselho de um tipo mais ou menos assim: “A coisa mais importante quando atravessar a rua é olhar para os lados”. Genial! Muitas pessoas no mundo não sabiam de coisas assim e estavam felizes em saber, e em como aquilo poderia mudar as suas vidas e torná-las pessoas que realmente ganham o mundo, porque saem por aí sem medo, porque sabem como atravessar uma rua. São mais ou menos deste tipo os conselhos de como fazer amigos e influenciar pessoas. Cada lição era como “Jamais ponha a mão no fogo ou você irá se queimar”. Pois é. Muitas pessoas, pelo visto, precisam saber disso!

Conclusão, não pode haver no mundo profissão mais nobre do que ridicularizar uma coisa dessas. É mais nobre que ser médico, advogado, engenheiro, maestro (que é a coisa mais nobre que às vezes eu penso que existe). As pessoas que dedicam a vida a ridicularizar pretensões desse tipo são as mais inteligentes do mundo. Ridicularizar um diretor de cinema genial e paquerar uma celebridade burra é coisa para gente realmente inteligente. E sabe o que mais? Não é à toa que filósofos se interessam por isso, e possam eventualmente se tornar jornalistas de fofoca. Fofoca da boa. Ridicularizar é uma arte! Requer um senso apuradíssimo para o real e para o falso, que é raro hoje em dia. Zombar de pretensiosos ou ridicularizar ideias geniais requer um faro especial para o verdadeiro, e talvez seja o verdadeiro jeito de fazer filosofia. Zombar sem ceticismo!

Talvez alguns filósofos tenham conseguido fazer algo assim com teses e aulas, mas boa parte apenas conseguiu fazer do “métier” filosófico um círculo pretensioso um tanto quanto ridículo, que não pode dar aos seus membros muita esperança na verdade e nem mesmo no óbvio. Espero que haja no mundo pessoas realmente inteligentes. Filósofos para ridicularizar “filósofos”, e naturalmente perder amigos.

Arthur Grupillo

Jornalista e professor de filosofia da Universidade Federal de Sergipe.