Lobato não se dá bem com nuances, matizes, meios-tons; não há sutileza em sua obra.
Quando o debate acerca do racismo na obra de Monteiro Lobato voltou à tona recentemente, fiz algumas afirmações polêmicas numa postagem do Facebook. Afirmei que, como escritor para o público adulto, Lobato é medíocre; que, contrariando a opinião corrente, Urupês é o livro de contos no qual os problemas da prosa do autor aparecem de maneira mais concentrada; que o conto “Bocatorta”, do livro citado, é um desastre. Para não ficar no âmbito do juízo meramente pessoal, resolvi expedir este esboço de análise, focando-me nos aspectos estilísticos e técnicos do conto.
“Bocatorta” inicia-se com uma descrição do Atoleiro, pântano que dá nome à fazenda do major Zé Lucas. Temos, então, uma convenção bastante comum na literatura regionalista romântica — a abertura da narrativa com um panorama natural:
(…) A meio entre o povoado e o estirão das matas virgens dormia de papo acima um famoso pântano. Pego de insidiosa argila negra fraldejado de velhos guaiambés nodosos, a taboa esbelta cresce-lhe à tona, viçosa na folhagem eréctil que as brisas tremelicam. Pela inflorescência, longas varas soerguem-se a prumo, sustendo no ápice um chouriço cor de telha que, maturado, se esbruga em paina esvoaçante. Corre entre seus talos a batuíra de longo bico, e saltita pelas hastes a corruíra-do-brejo, cujo ninho bojudo se ouriça nos espinheiros marginais. Fora disso, rãs, mimbuias pensativas e, a rabear nas poças verdinhentas de algas, a traíra, esse voraz esqualozinho do lodo. Um brejo, enfim, como cem outros. (p. 119)
No primeiro parágrafo, já podemos notar a marca principal do estilo de Lobato em Urupês: sua vernaculidade, isto é, seu português castiço, haurido na fonte dos clássicos portugueses, sobretudo na prosa de Camilo Castelo Branco. Numa sintaxe impecável, conjugam-se termos como “insidiosa”, “fraldejado”, “inflorescência”, “soerguem” etc. com nomes de espécies da flora e da fauna locais, o que empresta certo tempero regional à sua linguagem. Na fala das personagens, porém, é que encontramos de maneira bem definida o falar regional, pontuado por marcas de oralidade, com o objetivo de apresentar ao leitor um registro realista da linguagem do homem do campo. Da boca do fiscal Vargas:
— Porcos têm sumido alguns. Uma leitoa rabicó e um capadete malhado dos “Polanchan”, há duas semanas que moita. Para mim — ninguém me tira da cabeça — o ladrão foi o negro, inda mais que essa criação costumava se alongar das bandas do brejo. Eu estou sempre dizendo: é preciso tocar de lá o raio do maldelazento. Aquilo, Deus me perdoe, é bicho ruim inteirado. Mas não “querem” me acreditar… (p. 120)
Vez e outra, esse falar regional invade a narração por meio do discurso indireto livre:
O major sorriu àquele “querem”. Vargas, com ojeriza velha ao mísero Bocatorta, não perdia ensanchas de lhe atribuir malefícios e de estumar o patrão a corrê-lo das terras que aquilo, Nossa Senhora! até enguiçava uma fazenda… (grifo meu — Idem)
No geral, entretanto, o que se verifica é um contraste entre o discurso do narrador, vazado num português repleto de lusitanismos e rasgos de erudição, e o discurso das personagens do campo, com sua tipicidade. O homem da cidade, por outro lado, comunica-se numa linguagem escorreita semelhante à do narrador, como constatamos nas falas do bacharel Eduardo: “— É o meio de te curares de vez. Nada como o aspecto cru da realidade para desmanchar exageros de imaginação” (p. 122). Ou: “— Os rastos! Estou a apostar como tais rastos são os do próprio coveiro. O terror impediu-lhe de reconhecer o molde do casco…” (grifos meus — p. 123).
Estamos diante daquilo que Antonio Candido definiu como dualidade estilística da prosa regionalista brasileira, caracterizada pelo contraste da linguagem culta do narrador e do homem da cidade com a linguagem rústica dos habitantes da área rural, marcando a distância e estabelecendo uma hierarquia entre elas (como se as pessoas da cidade e das classes instruídas sempre se comunicassem num português perfeitamente literário). Para Candido, tal procedimento tem como consequência a reificação do indivíduo do campo, transformado em objeto exótico para consumo de uma perspectiva citadina. Escritores como Simões Lopes Neto, utilizando-se do narrador em 1ª pessoa, teriam rompido com esse esquema ao assumirem a perspectiva do homem do campo, com sua visão de mundo e linguagem características.
Estilisticamente falando, portanto, Monteiro Lobato não representa uma inovação substancial no que diz respeito a nossos escritores regionalistas do século XIX, afirmação que pode ser matizada considerando-se o uso frequente do discurso indireto livre, que, de maneira pontual, promove uma fusão entre a perspectiva citadina e a do matuto. Aliás, a linguagem do autor sequer está isenta do artificialismo preciosista da literatura brasileira da Belle Époque, que encontrou na figura pomposa de Coelho Neto seu principal representante. Vejamos: “É sempre nada quando o que quer que é lucila avisos informes na escuridão do subconsciente, como sutilíssimos ziguezagues de sismógrafo em prenúncio de remota comoção telúrica” (p. 124).
Além da dualidade estilística verificada entre a linguagem do narrador/citadino e a do homem do campo, outra se encontra na caracterização das personagens. Embora, como se saiba, uma das características da literatura na modernidade seja a dissolução das fronteiras entre os estilos da poética clássica, permitindo a mescla do sublime e do grotesco, em “Bocatorta”, tais âmbitos se apresentam de maneira absolutamente convencional e de modo que, em vez de oferecer uma representação mais complexa e dinâmica da realidade, submete-se a natureza humana às funções esquemáticas que as personagens assumem no enredo. De um lado, temos a caracterização de Cristina, retratada com todos (eu disse “todos”!) os clichês de uma verdadeira virgem romântica:
(…) Cristina era um ramalhete completo das graças que os dezoito anos sabem compor.
Donaire, elegância, distinção… pintam lá vocábulos esbeiçados pelo uso esse punhado de quês particularíssimos cuja soma a palavra “linda” totaliza? Lábios de pitanga, a magnólia da pele acesa em rosas nas faces, olhos sombrios como a noite, dentes de pérola… as velhas tintas de uso em retratos femininos desde a Sulamita não pintam melhor que o “linda!” dito sem mais enfeites além do ponto de admiração.
Vê-la mordiscando o hastil duma flor de catingueiro colhida à beira do caminho, ora risonha, ora séria, a cor das faces mordida pelo vento frio, madeixas louras a brincarem-lhe nas têmporas, vê-la assim formosa no quadro agreste duma tarde de junho, era compreender a expressão dos roceiros: Linda que nem uma santa.
Olhos, sobretudo, tinha-os Cristina de alta beleza. Naquela tarde, porém, as sombras de sua alma coavam neles penumbras de estranha melancolia. Melancolia e inquietação. (p. 124)
Do outro lado, a tétrica pintura do Bocatorta:
Bocatorta excedeu a toda pintura. A hediondez personificara-se nele, avultando, sobretudo, na monstruosa deformação da boca. Não tinha beiços, e as gengivas largas, violáceas, com raros cotos de dentes bestiais fincados às tontas, mostravam-se cruas, como enorme chaga viva. E torta, posta de viés na cara, num esgar diabólico, resumindo o que o feio pode compor de horripilante. Embora se lhe estampasse na boca o quanto fosse preciso para fazer daquela criatura a culminância da ascosidade, a natureza malvada fora além, dando-lhe pernas cambaias e uns pés deformados que nem remotamente lembravam a forma do pé humano. E olhos vivíssimos, que pulavam das órbitas empapuçadas, veiados de sangue na esclerótica amarela. E pele grumosa, escamada de escaras cinzentas. Tudo nele quebrava o equilíbrio normal do corpo humano, como se a teratologia caprichasse em criar a sua obra-prima. (p. 126)
Semelhantemente ao que ocorre no mais convencional dos folhetins românticos, a suprema beleza de Cristina é a exteriorização de sua pureza; já a feiura incomparável do Bocatorta, traçada com esmero naturalista elevado à enésima potência, é a expressão dos vícios terríveis que corrompem sua alma. Há uma divisão aqui, fundada numa visão maniqueísta: Cristina e Bocatorta são polos extremos e encenam o espetáculo da suprema bondade ameaçada pelo mal irredutível. Eduardo, ao tomar conhecimento da existência do Bocatorta, pergunta se este se assemelha ao Quasímodo, o famoso corcunda de Victor Hugo. No entanto, a personagem de Lobato não só o supera de longe em sua deformidade, como ainda é destituído de qualquer resquício de humanidade e de ambivalência moral. A construção das personagens lobatianas se caracteriza por um esquematismo grosseiro.
Tudo isso aponta para o problema maior da obra adulta do autor: Lobato não se dá bem com nuances, matizes, meios-tons; não há sutileza em sua obra. Por exemplo: não basta que Cristina seja o arquétipo da virtude feminina, sendo, inclusive, comparada a uma santa; é preciso ainda que ela receba um nome de evidente conotação cristã. Da mesma forma, não basta que Bocatorta seja hediondo e deformado; é necessário que ele seja a própria encarnação do horror e que seu cão, de latido agourento, chame-se Merembico, nome de ressonância satânica para os moradores da região. Vejamos agora como essa falta se sutileza prejudica o andamento do enredo.
A narrativa inteira é um exercício reiterativo de antecipação, sabotando a atmosfera de mistério do conto na tentativa de dar desenvolvimento didático a uma trama de suspense com desfecho sensacionalista. Desde o momento em que se menciona a figura do Bocatorta, tudo se torna presságio da catástrofe que se abaterá sobre as personagens, principalmente sobre Cristina (as passagens a seguir se referem a ela): “(…) desde esse instante, porém, uma imperceptível sombra anuviou-lhe o rosto” (p. 122); “(…) as sombras de sua alma coavam neles [olhos] penumbras de estranha melancolia” (p. 124); “Um como intátil morcego diabólico riscava-lhe a alma de voejos pressagos” (Idem); “(…) sutilíssimos zigues-zagues de sismógrafo em prenúncio de remota comoção telúrica” (Ibidem); “O sombrio da mata anoiteceu de vez o coração de Cristina” (p. 125); “Retransia-a em doses crescentes o velho medo de outrora” (Idem); “(…) sentiu correr na pele o arrepio dos pesadelos antigos” (Ibidem). Então, logo após o encontro com Bocatorta, sobrevém a pneumonia que a levaria à morte. Quem poderia imaginar?
Vê-se que Lobato peca por didatismo (o que é mortal para uma narrativa de suspense) e por excesso de ênfase, nunca confiando na inteligência do leitor. Tanto que, mais ao final do conto, quando Bocatorta é pego enlaçado ao cadáver de Cristina, o narrador só falta desenhar: “(…) [Eduardo] viu passar rente de si o vulto asqueroso do necrófilo”. Como se ainda restasse qualquer dúvida, é necessário explicitar: trata-se de um episódio de necrofilia. Não há espaço para subentendidos.
O mesmo didatismo prejudica o desenlace, que se baseia numa dupla “surpresa”: o cadáver de Cristina quase será violado e o responsável por isso é o Bocatorta. Lobato cose a peripécia com pouca habilidade. No dia seguinte à descrição pavorosa que o fiscal Vargas faz do Bocatorta a Eduardo, chegam aos ouvidos deste os “macabros rumores” de que uma “coisa” — “que não seria bicho nem gente deste mundo” (p. 122) — estaria revirando sepulturas. Eduardo se apressa em desqualificar tais rumores, mas o narrador não deixa barato: o bacharel é descrito como “imbuído do ceticismo fácil dos moços” (p. 123), ao passo que o major, “(…) esse não piou sim nem não. A experiência de vida ensinara-lhe a não afirmar com despotismos, nem negar com ‘oras’” (Idem). Ora, entre o “ceticismo fácil” do bacharel arrogante e a “experiência de vida” do cauteloso (e rico, pois não se trata de um rústico campesino) fazendeiro, há alguma dúvida de em quem o leitor deve se fiar?
Já nas primeiras páginas do conto, o leitor possui todas as peças do quebra-cabeças: 1) há um negro monstruoso vivendo na fazenda do major; 2) os rumores que sugerem a profanação dos túmulos de duas moças merecem ser levados a sério; 3) um ser tido por sobrenatural seria o responsável pelas profanações. A aparição do Bocatorta, pouco depois, só reforça o caráter inumano de sua figura. Quando Cristina morre — bingo! O desfecho se torna previsível. Afinal, surpresa teríamos se o responsável pelas profanações não fosse o negro demoníaco da história.
A engenharia narrativa de “Bocatorta” não funciona. Lobato não consegue criar uma atmosfera de mistério, pois suas descrições — de notação realista e que buscam um registro fidedigno do universo regional — não produzem um poder encantatório de sugestão, só possível de ser alcançado com uma linguagem vaga e ambígua, recurso que o autor desconhece completamente. Para compensar, Lobato preenche cada espaço narrativo com presságios e maus agouros, o que, em vez de contribuir com o suspense da trama, sufoca-o por força da reiteração. Além disso, o autor se preocupa em arranjar os elementos da peripécia da maneira mais didática possível — uma vez que não confia na inteligência do leitor —, gerando previsibilidade em relação ao desfecho. Por trás de tudo, verificam-se ainda um esquematismo grosseiro e uma preocupação neurótica em enfatizar cada aspecto significativo da história, faltando apenas destacá-los em negrito.
Nada em “Bocatorta” foge ao convencional. Talvez o que soe moderno no texto seja a maneira mecânica como o autor combina convenções de origem díspares — tradição regionalista brasileira, literatura gótica, folhetim romântico, prosa realista-naturalista etc. Trata-se de uma colcha de retalhos e não de uma atualização criativa dos lugares-comuns presentes na tradição; por isso concordo com Alfredo Bosi que, em vez de colocar Lobato ao lado dos escritores pré-modernistas, prefere localizá-lo na vertente regionalista do realismo brasileiro:
A sua obra de narrador entronca-se na tradição pós-romântica: retalhos de vida interioranos, muita intenção satírica, alguma piedade e efeitos variamente sentimentais ou patéticos. Apesar de pontilhada de raro em raro por certas ousadias impressionistas, é uma prosa que não rompe, no fundo, nenhum molde convencional. O modelo não atingido é Eça de Queirós, pela carga irônica e o gosto pela palavra pitoresca. Um resto de purismo (que ele tão bem satirizou em “O colocador de pronomes”) leva-o a catar em Camilo vozes e torneios castiçamente lusos. Só esse fato já bastaria para denunciar a contradição moderno-antimoderno que dividiu o pensamento e a arte de Lobato.
Os pontos levantados por esta análise não podem, sem mais, ser estendidos à produção infantil do autor; falta um trabalho de verificação nesse sentido que, por ora, não estou em condições de fazer, sem falar que não tenho familiaridade com literatura infanto-juvenil em geral. No máximo, minha análise apresenta aspectos pertinentes à sua produção adulta e, mais especificamente, ao livro Urupês. Para mim, os aspectos mais evidentes da literatura adulta de Lobato podem ser sintetizados pela ideia de “mão pesada”: ausência de sutilezas, didatismo esquemático, horror à ambiguidade e subestimação da inteligência do leitor. Não é por acaso que, nos textos de caráter humorístico, a ironia lobatiana descambe muito facilmente para o sarcasmo franco e inequívoco e para a fabricação de caricaturas.
Emmanuel Santiago
Doutor em Literatura Brasileira pela USP. Autor de Pavão bizarro (poesia) e A narração dificultosa (crítica).
[email protected]