Não vale a pena para o Presidente da República persistir nesse jogo, porque a sorte não lhe é favorável.
“O governo Bolsonaro é o mais completo da história da República” — disse-me o meu amigo Estêvão Bispo — “porque é, ao mesmo tempo, governo e oposição”. Eis a melhor frase sobre a atual Presidência. O Presidente da República, há quase três meses no governo, parece não entender qual é o seu papel institucional. Deputado federal por 27 longos anos, despreza a lógica da relação entre os poderes, recusando-se terminantemente a fazer a articulação política que de si se espera. Confunde-se, achando que se lhe cumpre o papel de desestabilizar sua própria administração.
A liderança da oposição é disputada pelos filhotes presidenciais, que comportam-se pouco republicanamente como príncipes-herdeiros. Carlos Bolsonaro, vulgo “Carluxo”, é tão profícuo na arte de fazer bobagens, mas tão profícuo, que uma iniciativa cidadã organizou uma vaquinha para presenteá-lo com um Playstation, no intuito de que o videogame melhor distraia sua infantil inquietude do que o Twitter, playground onde brinca com a República com a permissão do papai. Eduardo, seu irmão com mandato na Câmara dos Deputados, tenta concorrer na arte de falar bobagens. Flávio, o senador, tem sido ligeiramente mais discreto, à medida em que se avolumam suas ligações — e a de seu próprio pai e mentor, o Presidente da República — com o crime organizado no Rio de Janeiro.
Levantou-se a internet contra a patética emulação de José de Abreu, que proclamou-se presidente em gozação a Juan Guaidó e ao povo venezuelano, cansado da fome e da ditadura. Até as vozes mais renhidas na defesa do lulismo se perguntam, in pectore, sobre a razão de Haddad estar se preocupando mais em fazer visitas íntimas a Lula, do que em usar seu capital eleitoral, opondo-se ao governo. O PSDB, abatido depois da fragorosa derrota de Alckmin, anda calado. Marina Silva, antes grande nome da terceira via, perdeu estatura. Não há uma oposição parlamentar ou política séria ao governo de Jair Bolsonaro. Mas, dela ninguém precisa, quando um governo esquizofrênico ocupa o poder e faz, ele mesmo, o papel que caberia às forças opositoras.
Os erros do passado servem de aprendizado. Tivemos, entre 2011 e 2016, uma presidente que desdenhou abertamente da articulação política, do parlamento, e da própria figura do Presidente da Câmara dos Deputados à altura, Eduardo Cunha. Tratava aos parlamentares com descaso, acreditava-se absoluta em seus poderes, completamente detentora de apoio popular, e fez o que deu na telha. Terminou Dilma Rousseff, depois de um dos piores governos da história, sofrendo impeachment. O mesmo ocorreu com Fernando Collor de Mello, em 1992. Fez pouco caso do parlamento, acreditou que as ruas defender-lhe-iam, e tomou a liberdade de xingar ao Presidente da Câmara de “canalha, escroque e golpista imoral”, além de qualificar a Ulysses Guimarães como “senil e esclerosado” e outros parlamentares como “cagões”, “bundões”. À imprensa, Collor guardou o epíteto de “merda”, dizendo que engoliriam “pela boca e pelo outro buraco o que estão falando contra mim”. Não poderia ter outro resultado, em ambos os casos, além do afastamento do poder. São valiosas lições a qualquer político, e que deveriam ser inestimáveis para o Presidente da República: para infelicidade do país, não parecem lhe dizer respeito.
Primeiro, Jair Bolsonaro desqualifica a reforma da previdência capitaneada pelo seu ministro da Economia, Paulo Guedes. Diz, ignorando a necessidade de algo mais radical que aquilo apresentado à Câmara, que “há muita gordura para queimar”, gerando a ira da equipe econômica. Depois, se nega a assumir a paternidade do projeto, com o esperto objetivo — só que não — de deixar o imenso passivo político nas mãos dos deputados federais, a quem caberia a pecha de malvados, assassinos de velhinhos, e sem corações. Nesta mesma toada, oferece uma reforma generosa da previdência dos militares, para que caiba ao parlamento o jogo sujo.
Depois de desovar a reforma nas mãos de Rodrigo Maia, passa a atacá-lo, através das redes sociais, com a ajuda de seus filhos e de sua militância bolsoafetiva. Carlos Bolsonaro, por exemplo, tentou impingir em Maia a pecha de criminoso mais de uma vez. Enquanto o Presidente da Câmara evidencia sinais de desconforto, insufla a militância a postar “Fora, Maia”, em suas contas de Twitter. As próprias lideranças formais do partido do presidente, Joice Hasselmann e Delegado Waldir, tentam segurar a verdadeira chacina do apoio parlamentar do governo, desesperados. Delegado Waldir, aliás, fez um desabafo público sobre a covardia do Presidente da República em cuidar da reforma da previdência como deveria, sob os olhos de seus colegas. Isso tudo, aliás, enquanto a operação judicial outrora capitaneada pelo hoje ministro da Justiça, o ex-juiz federal Sérgio Moro, prende o líder moral do Centrão, o presidente Michel Temer, e o quase-sogro de Maia, o ex-governador fluminense Wellington Moreira Franco — uma coincidência curiosa, visto que Moro e Maia tiveram entreveros por conta do projeto anticrime e as cobranças públicas.
Enquanto isso, o apoio político da base mais firme de Bolsonaro vai se esvaindo. A bancada evangélica, principal apoiadora do governo, diz-se agora separada, como manifestou o deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP). O estridente pastor pentecostal Silas Malafaia, aliado há muito do Presidente da República, passou a fazer feroz oposição. A frente ruralista, que aderiu ao governo com unhas e dentes, vê-se apartada diante da ameaça gerada por Bolsonaro aos plantadores de soja, com a recusa em fazer negócio com a China e a cessão involuntária de contratos aos americanos, mui amigos. O clima no plenário da Câmara dos Deputados, conforme narrou-me um assessor parlamentar, é de desolação: “no lado governista, vê-se deputados governistas cochichando contra o governo, em clima de rebelião velada. E isso tudo aos dois meses de governo. Meus colegas mais velhos contam que nem com Collor era assim”.
Consideremos que a reforma da previdência era a principal razão da confiança do mercado financeiro no governo. Sabemos, destarte, que sem o apoio do mercado, os governos tendem a enfrentar crises econômicas e dificuldades políticas: o câmbio encarece substancialmente, os investimentos somem, o desemprego aumenta, e a tendência de geração de crise econômica torna-se crescente. É, portanto, a aprovação da reforma da previdência essencial para a sobrevivência de Bolsonaro no Palácio do Planalto. Agora, leitor, imagine: sendo hoje o Presidente da República, essa seria sua principal preocupação e bandeira, não é?
Ocorre que o Presidente da República não sou eu, nem o leitor, nem qualquer pessoa minimamente equilibrada. O Presidente da República, hoje, é Jair Bolsonaro. Enquanto seu mundo desmorona, sua preocupação é com uma suposta imoralidade dos festejos momescos. Em vez de usar o Twitter para defender a reforma — esqueçamos que quem usa o seu Twitter é o vereador Carlos Bolsonaro, que comprovou ser o verdadeiro gestor da conta ao postar, por engano, uma foto e texto de seu perfil na conta do pai — Jair Bolsonaro posta conteúdo pornográfico, como dois homens praticando urofilia, e perguntando sobre o que é “golden shower”. No lugar de buscar apoios à reforma, trata-a como pauta de menor importância, pedindo a seu filho Eduardo para tentar viabilizar o pacote anti-crime de Moro como prioridade, gerando toda a crise com Rodrigo Maia.
A Bolsonaro, fê-lo acreditar ser líder de uma revolução a circunstância que o levou à Presidência. Vê-se o Presidente da República como uma espécie de Castelo Branco desprovido de inteligência, cultura e estima de seus pares de caserna. A cúpula bolsonarista e a massa bolsoafetiva que o apoia, com apoio de suas páginas em redes sociais e com seus grupos de Whatsapp, difundem o mito do fim da velha política e do presidencialismo de coalizão, acreditando que vivemos sob uma nova ordem. Há muito que o desprezo pela política deixou de evidenciar mero descompasso com a realidade. Acredita piamente, como um Jânio Quadros no ato de renúncia, que qualquer ataque à estabilidade do governo será respondida em uníssono por protestos populares. Confiam os Olavos de Carvalho, os Filipes Martins, os Allans dos Santos, os chupa-meias presidenciais e aqueles que, depois de desfeita a reputação — quer sejam do povo, quer sejam famosos — não podem voltar mais atrás, que as Forças Armadas saberão impôr à república e à cidadania um silêncio obsequioso.
Ledo engano. Bolsonaro está a um passo à beira do abismo. Como venho apontando desde sua vitória, sua legitimidade popular é efêmera, porque foi construída com base em mentiras. O impoluto político, de quem poder-se-ia dizer “homofóbico, por que não podem chamar de corrupto”, comprovou-se e ainda comprovar-se-á mais tão enlameado quanto um Lula da vida.
Um dos calcanhares-de-Aquiles do Presidente, por exemplo, é a sua intimidade com as milícias do Rio de Janeiro. Um dos assassinos da vereadora Marielle Franco, Ronnie Lessa, é vizinho de Jair Bolsonaro em seu condomínio, na Barra da Tijuca. Outro dos assassinos usava foto abraçado com o Presidente da República em seu perfil. Não bastasse, Bolsonaro era consogro, através de um dos seus filhos, de um dos assassinos, pois um de seus filhos namorava a filha do sargento reformado Lessa. Seu filho, o senador Flávio, quando deputado estadual, empregou a mãe e a esposa do capitão Adriano da Nóbrega, líder do Escritório do Crime. E não só: diversos milicianos notórios foram homenageados publicamente por seus dois filhos com mandatos vinculados ao Rio de Janeiro, e em mais de uma ocasião o próprio Bolsonaro defendeu e elogiou a milícia.
Não podemos nos esquecer das ocasiões em que Bolsonaro esteve envolvido em negociações suspeitas, como no caso em que Michelle Bolsonaro, sua esposa, recebeu um cheque suspeito de R$ 24 mil, endossado por Fabrício Queiroz — ex-chefe-de-gabinete do senador Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa, acusado de recolher salários de assessores fantasmas para repassar ao então deputado estadual e sua família. Ou, no caso em que Bolsonaro mandou suspender a importação de banana do Equador, para beneficiar a si próprio e à sua família, que vive do negócio no Vale do Ribeira. Ainda, está envolto em suspeitas de que sua campanha tenha sido bancada por dinheiro sujo de candidaturas fantasmas, casos em que estavam envolvidos o seu ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, e o presidente do seu partido, o deputado federal Luciano Bivar (PSL-PE) — como denunciou o ex-ministro Carlos Bebianno, que foi traído e culpado pelo Presidente por algo com que não tinha estrita ligação, ao contrário do primeiro-morador do Planalto.
Há mais coisa para estourar pela frente. É o caso da “lei Sheldon Adelson”, um projeto da lavra de Paulo Azi (DEM-BA). O projeto de lei no. 530/2019 prevê a liberação da construção e operação de um cassino-resort por unidade da federação (com a possibilidade da abertura de dois no Rio de Janeiro, três em São Paulo e em Minas Gerais). Não há algo de estranho nessas limitações, sendo que a concorrência e a existência de mais cassinos-resorts gerariam mais empregos e investimentos? A concessão, curiosamente, de acordo com o art. 4º do projeto de lei, só seria dada a companhias que atendessem certas condições — isso é, a Las Vegas Sand Corporation e as Organizações Trump. A Las Vegas Sands, presidida por Sheldon Adelson, tem sido a principal lobbista pela aprovação da lei. Por sua vez, Trump abordou a pauta em sua reunião com Jair Bolsonaro, para reforçar um compromisso que Bolsonaro já tinha feito, durante a campanha, com a pauta. Quando o projeto de lei, nos atuais moldes — que não prevêem ampla concorrência no negócio dos cassinos-resorts — for aprovado e sancionado pelo Governo Federal, seria interessante saber se alguém recebeu quaisquer incentivos indevidos da parte da Las Vegas Sands ou das Organizações Trump. É inevitável imaginar que o roteiro da parte inicial de “O Poderoso Chefão 2” esteja se descortinando de forma tão óbvia.
O Congresso, em meio a esse clima de animosidade, ameaça o Presidente da República com a formação de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar as milícias. Sabe-se que a primeira coisa a ser tratada serão as ligações íntimas do clã presidencial e o crime organizado paraestatal. Muita sujeira varrida para baixo do tapete seria levantada com o esforço de parlamentares aviltados por Jair Bolsonaro e o comportamento de sua trupe circense.
Valeria mesmo a pena apostar que o povo enganado iria manifestar apoio? Os bolsoafetivos que hoje matam e morrem na defesa do Presidente da República serão, amanhã, os primeiros a dizer que votaram em João Amoedo, em Geraldo Alckmin, ou a fingir mudez quando perguntados sobre seu voto. Os militares, que aparentemente são o único componente com estabilidade e equilíbrio mental nesse governo, arrebanhar-se-ão junto ao general-de-exército Antônio Hamilton Mourão, legítimo vice-presidente da República, em vez do capitão envaidecido que fez naufragar o brio das Forças Armadas. Seria, aliás, a redenção para a história, que ainda não fez as pazes com a ditadura militar. Não vale a pena para o Presidente da República persistir nesse jogo esquizofrênico, porque a sorte não lhe é favorável.
Lucas Baqueiro
Bacharel em Humanidades pela UFBA. Editor de política e atualidades da Amálgama.
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