A consolidação de uma nova política externa norte-americana será melhor para o mundo na relação entre os países?
Na América do Sul, quando se fala em política externa norte-americana é quase inevitável aquele imaginário caricatural de um caubói atirando e conquistando territórios. É possível que exista alguma razão de ser para tal, mas isto está longe da realidade. A política externa americana é questão de Estado num sentido mais estrito, está para além dos gostos do presidente em exercício, do seu grupo político ou do seu partido.
Quando Franklin Delano Roosevelt dirigiu a transição da política externa americana para o “internacionalismo” baseado em valores (o que Wilson não tinha conseguido após a Primeira Guerra) não o fez sozinho, mas de maneira bipartidária, em conjunto com a burocracia estatal, a opinião pública, a imprensa, etc. Pearl Harbor foi de grande auxílio para convencer os americanos, mas o consenso já estava sendo preparado em discursos, programas de rádio, entrevistas durante alguns anos.
O internacionalismo americano após a Segunda Guerra legou coisas muito meritórias, mas teve como consequência mais problemática a construção de um complexo militar-industrial (uma relação informal entre a indústria de defesa e o Pentágono) quase interdependente e que foi denunciado pelo presidente Eisenhower em sua despedida. Gastos com a defesa da soberania nacional é algo muito sério, principalmente se o seu país é a maior potência global. Entretanto, há inúmeros lobistas que desejam aumentar os gastos do governo em defesa, vendendo conflitos e intervenções pelo mundo. Distinguir qual intervenção (e quais os instrumentos a serem utilizados) é necessária e qual não é necessária e nem desejosa, não é simples.
A Guerra do Iraque é um ponto de inflexão. É bom lembrar que, quando George W. Bush declarou guerra ao Iraque, isto envolveu os dois partidos, a burocracia estatal etc. etc. etc. Depois dos gastos no Iraque e da crise de 2008, a ideia legada pela Segunda Guerra Mundial de que o “excepcionalismo americano” deveria servir não só de inspiração, mas precisava agir com tropas ou por meios indiretos noutros lugares do mundo para zelar por sua própria segurança e a do mundo democrático, começou a fenecer. Uma transição já percebida no governo Obama, que continua com o “nativismo isolacionista” da campanha de Trump, e também com suas ações de governo. É interessante notar que Hillary Clinton, na contramão do governo Obama, falava em intervir mais diretamente nos conflitos globais.
A “Doutrina Trump” foi definida por Ross Douthat como: a) nem isolacionismo, nem belicosidade; b) busca por contenção e realinhamento, dando protagonismo aos aliados regionais; c) abandono do idealismo “wilsoniano” e de gastos militares excessivos no exterior; d) diminuir o número de inimigos, concentrar-se numa disputa indireta contra a influência global da China (e por tabela da Rússia).
Como resultado, temos: a) saída de quase todas as tropas americanas da Síria; b) o anúncio da retirada de tropas do Afeganistão; c) desejo de fechar várias bases americanas com quase 30 mil soldados na Coréia do Sul (as tratativas com a Coréia do Norte não passam de um argumento para tal), o que levou ao custeio dos sul-coreanos na casa de um bilhão de dólares (sim, os americanos faziam um papel de força militar terceirizada para a Coréia do Sul assumindo quase todos os custos); d) mudança de relação com a OTAN, exigindo que os aliados europeus arquem com mais custos e invistam uma porcentagem maior do PIB em defesa, para que a maior parte dos custos saiam das costas americanas.
Sobre este último ponto é interessante notar a hipocrisia dos alemães exposta por Trump. Só quatro dos 29 países da OTAN cumprem a meta de investir 2% do PIB em defesa. A Alemanha, um dos países mais queixosos das novas exigências de Trump, foi acusada – com razão – pelo presidente americano de ser hipócrita nas questões geopolíticas por estar se tornando cada vez mais dependente de Putin por causa do Nord Stream 2, gasoduto que atravessa o Mar Báltico e que irá dobrar o volume de gás natural importado pela Alemanha da Rússia.
Os americanos gastaram vidas, dinheiro e ganharam algumas coisas com essas intervenções, sendo a “polícia de segurança do mundo”. Muitos menos do que imagina o antiamericanismo de quinta vigente no Brasil. É por isto que esta política está em queda com a opinião pública americana. Perguntem ao governo sul-coreano se querem a retirada de tropas americanas. Perguntem a Europa se ela gostaria da retirada dos americanos das bases da OTAN.
Em termos práticos, a consolidação de uma nova política externa norte-americana será melhor para o mundo na relação entre os países? Eu não sei. Não ficaria espantado se descobríssemos que o período que une a Guerra Fria e a nova ordem após o fim da URSS foi um período raro de relativa paz e estabilidade nas relações entre os países. Como também acredito que, na medida certa, essas mudanças são movimentos mais inteligentes do que simplesmente levar tropas, gastar dinheiro e piorar o contexto local de determinados conflitos.
Todavia, há um novo ponto: uma reação do establishment industrial-militar, ou dos “falcões”, se preferirem. No Pentágono, há uma espécie de divisão depois da Guerra do Iraque e se vive certos dilemas. James Mattis, por exemplo, segurou o ímpeto de Trump de participar mais ativamente do conflito na Síria depois do uso de armas químicas por Assad. Todavia, pediu demissão quando o presidente definiu que as tropas americanas sairiam da Síria sem acertar-se antes com aliados históricos como os curdos. No fim, Trump decidiu manter apenas 200 homens na Síria. Ontem, Joseph Votel, chefe das forças norte-americanas no Médio Oriente, declarou-se publicamente contrário as saídas de tropas americanas do Afeganistão.
Entra em campo o nosso terceiro personagem: John Bolton. Diplomata e ex-militar, Bolton era um dos “falcões” neocons da era Bush. Em março de 2018, tornou-se Conselheiro de Segurança Nacional de Donald Trump. Bolton veio ao Rio de Janeiro em novembro encontrar-se com Jair Bolsonaro, recém-eleito presidente do Brasil. Pela “Doutrina Trump”, caberia ao Brasil, novamente “amigo” no tabuleiro geopolítico, cuidar da segurança e da estabilidade nessa região. Junto com atores importantes: Colômbia, Equador, Argentina e Chile. É quase uma reedição do plano de segurança regional de Sumner Welles para a ONU, que foi derrotado pela teoria dos “quatro guardiães” (Conselho de Segurança), que mantinha a centralidade das decisões num órgão. Mas as “más línguas” também poderiam pensar (com alguma razão) sobre este encontro pelo histórico de Bolton: intervenção na Venezuela?
Desde janeiro de 2019 a figura de Bolton cresceu no governo, principalmente como seu porta-voz em política externa. Seria o desejo de Trump por mudanças de rota em sua política externa? Qual a influência de Bolton na cabeça pragmática de mercador de Trump? Jonathan Bernstein levantou um ponto interessante em sua coluna na Bloomberg: Trump não consegue atrair bons quadros para trabalhar na atual Casa Branca, e o seu Conselheiro de política externa não filtra as diversas opiniões, apresentando as perdas e os ganhos, mas defende sua maneira de ver o mundo. Estaria a presidência Trump sendo sugada pelo seu próprio poder executivo? Creio que é cedo para saber.
Estamos num momento que Walter Benjamin chamava de “dialética em estado de paralisia”, quando não há “solução” ou síntese para o problema. Trump se curvou as pressões do establishment em política externa ou está usando figuras como Bolton para ameaçar e lucrar mais na frente como em toda a sua carreira empresarial? Esse establishment militar é coeso? Como pensa realmente? A vontade de Trump não se fará sem a construção de um apoio bipartidário, da opinião pública, dos militares, etc. Bolton está sendo usado ou está sendo persuasivo? Quem está com a razão sobre a retirada de tropas americanas pelo mundo? É possível que estejam soprando muitas coisas sobre uma intervenção na Venezuela na cabeça de Trump. Mas Trump não é nada inocente.
Teremos que aguardar mais um pouco para entender se a inflexão na política externa americana veio para ficar, se a Doutrina Trump seguirá os seus desenhos iniciais ou será reconfigurada, e principalmente se ela trará bons frutos.
Elton Flaubert
Doutor em História pela UnB.