Há semelhanças entre Norberto Ceresole, guro de Chávez, Olavo e os petistas.
Há pessoas com as quais aprendemos ao ouvi-las falar. O General Mourão é uma delas: quando deu uma entrevista à GloboNews, ainda nas eleições, trouxe ao público não especializado a figura de Norberto Ceresole, guru de Chávez, peronista, guerrilheiro, antissemita militante e autor de Caudillo, Ejército, Pueblo. Munida desta informação, pude procurar o próprio livro. O leitor pode encontrar uma transcrição sua aqui.
Ceresole começa o seu livro clamando contra a imprensa. Coloca-se como vítima de um grande ataque coordenado à sua pessoa, ataque covarde contra um único indivíduo. Isso atestaria a má qualidade da imprensa e sagraria a sua condição de vítima perseguida, da qual o leitor deveria se apiedar.
É verdade que campanhas de difamação existem, e é verdade que um jornal tradicional tem um poder muito grande contra a reputação de indivíduos. Acontece que a vítima Ceresole escrevia na condição de amigo do rei, com Chávez já eleito – e o próprio livro era a celebração da tomada de poder pelo amigo. Estranha condição de vítima, não?
Acontece também que é perfeitamente possível uma pessoa defender propósitos infames (como o fim da democracia) e teses estapafúrdias (como que a terra talvez seja plana). Assim, será difícil encontrar um jornal sério que faça uma matéria imparcial a seu respeito, ou um colunista que lhe seja elogioso. Nunca vai aparecer no Estado de São Paulo, n’O Globo ou n’A Folha uma matéria imparcial que trate como iguais a teoria da terra plana, o geocentrismo e os seus contraditórios.[1] A imprensa séria nunca vai dar trela a despautérios proferidos por sectários – a menos que se consiga inventar uma cadeira universitária de despautério, dar graus de doutor em despautério, e assim se valer do prestígio da universidade para chancelar despautérios. Coisa que Ceresole não tinha logrado.
Mas o que Ceresole defendia para atrair apenas atenção negativa da imprensa? Que o Holocausto não chegou sequer a 1 milhão de mortos, tendo sido crime maior o cometido pelos aliados contra os alemães em Dresden. Que uma conspiração judaica contrarrevolucionária interfere desde sempre na história hispânica (os paramilitares adversários das FARC, mesmo, seriam um tentáculo colombiano do sionismo). Assim, desde que escreveu coisas como estas, os judeus para ele passaram a existir não como indivíduo, mas como multidão tomada pelo ódio, que baba alucinada de raiva contra ele. Coitado! Não deixa de lembrar a galerinha do Bem, para a qual o ódio é sempre um sentimento dos outros, e sempre um sentimento injustificado.
Ceresole é descrito como sociólogo, embora eu não tenha conseguido descobrir em qual universidade ele se formou. Sua tese política, como a de Mussolini, se dá como terceira via que visa a superar a democracia e o marxismo ao mesmo tempo. Para ele, o marxismo falha porque uma classe não pode governar; e mesmo Lênin estava errado, porque tampouco pode um partido. Assim, o poder deve ser indiviso, centrado num único homem carismático, que encarna a alma da nação, e tem uma conexão mágica com as massas. Esse regime idealizado por Ceresole, chamado de modelo venezuelano, seria “pós-democrático”. Por alguma razão, para ele, a democracia não se adéqua aos povos que não são ocidentais, ou são a periferia do Ocidente. Nosso caso. O “modelo venezuelano”, pois, é uma pós-democracia revolucionária que quebra “os tabus do pensamento ocidental-racionalista (marxismo incluso).” (p. 12) Mais um no clube no irracionalismo.
Naturalmente, para lograr êxito, não bastam os belos olhos do caudilho; é preciso força. Além da conexão mística com as massas, há o papel do Exército. Caudilho, Exército e Povo (nesta ordem) são os componentes do “modelo venezuelano”, e o parquedista Chávez começou o seu movimento conquistando adeptos no Exército. O movimento começou na caserna, fez uma tentativa propagandística de golpe, e depois se espalhou pela sociedade.
Ceresole acertou em muito das coisas que anteviu na Venezuela. Afinal, ele não apenas as anteviu como planejou: planejou o fim da democracia, a guerra civil generalizada, a perseguição aos moderados, que tinham sido iludidos. Já sua previsão acerca da Colômbia foi fiasco: ela não se despedaçou com uma guerra civil entre as FARC e os “sionistas”, nem houve intervenção militar estrangeira para resolvê-la. Explica-se: ele não tinha poder sobre o governo da Colômbia.
Há semelhanças entre Ceresole, Olavo e os petistas. Todos amam atacar a imprensa justo quando estão no poder. Todos querem seus despautérios sendo tratados com respeito por ela – querem, portanto, que a imprensa respeite os poderosos apenas porque são poderosos. Quando não estão dizendo abertamente que a imprensa deve ser fechada, estão se vitimizando. Anotemos para não nos esquecer: toda vez que alguém poderoso se faz de vítima da imprensa, dá um atestado de autoritário. Mudaram os tempos, o autoritarismo descarado passou a ser malvisto, e agora usa o disfarce de vitimismo. Mostra brasileira recente disso é o guru do presidente com ciúmes de Jean Wyllys, reclamando de Mourão, lastimando-se de ser perseguido pela imprensa e pelos críticos, clamando para que o governo tomasse providências contra todos.
Tal como Ceresole, o guru da Virgínia defende uma relação entre caudilho e povo sem intermediários: “O mecanismo político mais eficiente e quase infalível já registrado na História – por exemplo, na origem do reino português ou no triunfo de Ivan o Terrível – é a aliança do governante com a massa popular para esmagar os poderes intermediários corruptos e aproveitadores. Deus queira que o Bolsonaro entenda ser essa a sua grande oportunidade.” Fica difícil, porém, entender como Bolsonaro poderia acabar com as instituições, se ele não tem o apoio do Exército. Camicie nere irão marchar sobre Brasília e o resto do povo, incluindo militares e congressistas, acatará bovinamente? Um tuitaço, inflacionado por uma horda de robôs, fará os congressistas desistirem do Legislativo e voltarem pra casa?
Há uma grande diferença entre Ceresole, Olavo e os petistas: o primeiro se empenhou em ganhar as forças armadas; os outros, não. Os outros fazem questão de xingá-la a todo momento, crendo-se, sabe-se lá por que, amados pelas massas. Não se assuntam.
Ceresole era inteligente; e, para a infelicidade dos venezuelanos, logrou êxito. Os petistas tinham sua argúcia, e sabiam fazer manobras para corroer a democracia sem precisar das forças armadas. Só no desespero, com a prisão de Lula, começaram as mistificações mais alucinógenas de identificação com as massas – a conversa de todos sermos Lula, de termos células dele etc. Foi no desespero, também, que o PT começou a agir como um grande PCO: sectário e incapaz de diálogo. No desespero, tentou com algo parecido com uma marcha sobre Brasília, mas falhou[2]; prometeu os camicie nere de Stédile, mas deu chabu. Lula foi preso sem o derramamento de sangue prometido por Gleisi, e só os sectários de sempre se comoveram.
Mas acontece Olavo é ainda menos inteligente que o PT. Quer que Bolsonaro seja igual a um petista desesperado desde o começo do governo! E que tome o poder à base de tuitada, mantendo os generais bem afastados de si! Haverá plano menos inteligente?
Olavo, o megalomaníaco, está fadado ao fracasso; e, no entanto, tem seus agentes no governo que partilham consigo informações confidenciais. Olavo, o guru desastrado, que acha que a Pépsi tem feto dentro e não sabe se a terra é plana, faz o possível para que o Brasil naufrague junto consigo.
Como é possível um presidente que levou consigo duas joias da coroa antipetista – os economistas liberais e os juristas do combate à corrupção –, além dos excelentes quadros militares, pode pôr tudo isso em segundo plano? É impressionante, mas a resposta é fácil: a mentalidade simplória de quem acha que todas as respostas cabem em uma cabeça só. Não cabem. Por isso democracia é bom: para unir em esforço conjunto diferentes cabeças pensantes.
Se tudo der errado, pelo menos escolhemos o mais burro dos autoritários.
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NOTAS
[1] Conforme reportagem da Época de 18 de março de 2019 baseada em postagem do próprio autor, Olavo suspende o juízo acerca dessas duas posições. Não pode declarar que a terra é plana, nem redonda; nem que gira em torno do sol, nem que o sol gira em torno dela.
[2] Trata-se da ocasião em que Temer decretou GLO para coibir o vandalismo em Brasília.
Bruna Frascolla
Doutora em Filosofia pela UFBA e pesquisadora colaboradora da Unicamp.