Resenha de "As Ideias e o Terror", de Bruna Frascolla.
Nos últimos anos tem surgido, no mercado editorial nacional, uma literatura – ora produzida por intelectuais brasileiros, ora na forma de traduções de autores que eram completamente desconhecidos do público leitor brasileiro – que se destina a destrinchar e questionar certas ortodoxias ideológicas que moldam a visão de mundo de parcela significativa da nossa intelectualidade. Questionamentos à política identitária e seus excessos, ao relativismo epistemológico exacerbado, à ausência de consciência histórica da barbárie que regimes totalitários de esquerda perpetraram e à contradição presente nos representantes do campo progressista brasileiro, que, tanto em suas manifestações acadêmicas quanto políticas, frequentemente, reivindicam a defesa de valores “humanistas”, ao mesmo tempo em que elogiam ditaduras e regimes autoritários, têm aparecido na produção intelectual. Estamos diante de uma situação nova, na qual, pela primeira vez em décadas, temos certa pluralidade ideológica na discussão intelectual pública.
O livro As Ideias e o Terror, escrito por Bruna Frascolla – doutora em Filosofia pela UFBA, especialista na obra do iluminista escocês David Hume e colunista da Amálgama -, é mais uma contribuição que fortalece esse cenário de pluralidade que havia, em decorrência da hegemonia progressista na academia, no mercado editorial e nas atividades culturais em geral, sido impedido de emergir até os anos mais recentes.
A tese da autora em seu ensaio de filosofia política é ousada: ela acredita que, em certas manifestações autoritárias presentes nos movimentos sociais, na academia, na militância e na prática governamental recente da esquerda latino-americana, existe um renascimento transfigurado de ideias claramente “fascistas”.
A hipótese central do livro de Frascolla, embora aparente ser simples, não é. Não se trata simplesmente de afirmar que existem manifestações claramente fascistas que têm emergido recentemente no campo progressista. Para sustentar essa tese bastante controversa, a autora faz uma incursão bastante metódica em duas temáticas centrais: uma ligada à filosofia política e outra à história. A primeira temática, de ordem mais filosófica, é a questão do tribalismo e de seu ressurgimento ao longo do tempo. A filósofa inscreve-se claramente na interpretação da experiência ocidental fornecida por Karl Popper em seu clássico “A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos”, publicado em 1945. Para o austríaco, existe uma variação cíclica, ao longo da história ocidental, entre tribalismo e liberdade.
O “tribalismo”, para Popper, é uma espécie de controle do indivíduo pelo grupo que se manifestou nas formas de autoritarismo e totalitarismo que marcaram a experiência europeia no século XX, especialmente o nazi-fascismo e o comunismo. Sua forma de operação se dá a partir do tolhimento das liberdades, do combate às instituições representativas liberais, do cerceamento da sociedade civil e da imposição, em muitos casos, do culto a um Grande Líder que é visto como aquele que deve conduzir as massas. Os regimes e experiências históricas que se opõem ao tribalismo são, nessa leitura, aqueles que lograram preservar as “liberdades liberais” básicas, como o direito de remover ou colocar um governo no poder por eleições livres sem derramamento de sangue, a liberdade de imprensa, o direito de criar associações políticas, a liberdade para divergir em uma discussão pública racional, a liberdade de expressão no sentido lato, entre outras liberdades. O espírito tribal dos regimes totalitários de direita e de esquerda seria, no raciocínio do autor, a antítese das sociedades abertas com instituições liberais livres e impessoais.
Tendo essa problemática como estrutural na armadura de seu pensamento, Frascolla passa, então, a analisar uma série de momentos da história do Brasil e do mundo à luz dela. Passa pelo fascismo italiano, o “tipo ideal” desse fenômeno político, e analisa o pensamento de Mussolini em sua obsessão pela politização de todas as esferas da existência, sua ênfase no papel do grande líder, seu ódio à existência individual não subordinada à “causa” coletiva da realização do espírito nacional, sua oposição ferrenha ao mundo “burguês” ordinário e prosaico com sua democracia liberal “falsa”, sua crença na existência de um combate perpétuo entre as nações, e a sua defesa de que o movimento fascista possui um destino histórico único. A autora analisa os desdobramentos dessas ideias na Alemanha nazista, lembrando o papel da filosofia heideggeriana em sua elaboração ideológica, e o papel místico conferido à suposta relação inexorável existente entre raça e cultura, pautado, no caso nacional-socialista, em um culto da germanidade entendida como pretensa “raça originária”. Em suma, os acontecimentos políticos da Europa dos anos 1930 e 1940 são interpretados como a manifestação mais radical do ódio às liberdades individuais e valores liberais que constituem o cerne do que Frascolla, baseando-se no trabalho de Aurel Kolnai, conceitua como sendo o cerne do “Ocidente”.
Após realizar essa incursão histórico-filosófica, a autora expõe, de forma sistemática, uma série de situações históricas e de acontecimentos mais recentes envolvendo a universidade, grupos políticos de esquerda na América Latina e movimentos sociais, que evidenciam, em sua leitura, um renascimento dessas premissas fascistas básicas de forma transfigurada. No caso da universidade, que é examinada a partir da reconstrução de casos específicos, o foco da autora reside na demonstração da continuidade de certas tendências tribais próprias ao fascismo nos chamados “grievance studies”, termo utilizado por críticos da política identitária no mundo de língua inglesa para qualificar pesquisas acadêmicas baseadas em grupos minoritários (“gender studies”, “fat studies”, “chicano studies”, “queer studies”, etc.) que fomentam sistematicamente a ideia de que a realidade social é uma guerra perpétua pelo poder e pela dominação entre grupos de gênero, raça, sexualidade e orientação sexual distintos, nivelando assim qualquer individualidade em marcadores grupais tribais.
O anti-liberalismo presente em tais estudos, somado ao ódio explícito que muitos deles devotam a grupos sociais inteiros (como fica evidenciado no caso da pegadinha feita por três acadêmicos de língua inglesa que resolveram enviar um artigo para revistas feministas replicando trechos de “Mein Kampf”, apenas substituindo o judeu pelo “homem branco” como bode expiatório a ser combatido, e tiveram tal texto aceito para publicação em alguns desses periódicos) e à redução da vida social à política, promovendo, portanto, uma politização de todas as esferas da existência, tal como preconizado por Mussolini, em seu manifesto “La Dottrina del Fascismo”, de 1932, sinalizam, para a autora, um processo de transfiguração do fascismo que passa, no momento histórico atual, a ter, em determinados grupos de esquerda encastelados na universidade, a sua principal instância de difusão.
A diferença entre o tribalismo identitário atual – que preconiza o apartheid e a luta entre grupos sociais com base em doutrinas racialistas, misândricas e obcecadas com a desconstrução das identidades sexuais, além, é claro, da defesa ardente da destruição da ordem social, em alguns casos – e o fascismo histórico, é, na tese de Frascolla, apenas de contexto sociopolítico, e não de substância ideológica. É claro que a história é irrepetível e que fenômenos ideológicos jamais são replicados exatamente da mesma maneira. O que “As Ideias e o Terror” sinaliza, contudo, é que certas premissas básicas de uma ideologia totalitária como o fascismo podem se transfigurar e tomar outros moldes em outros contextos históricos. E mais: que a distinção entre “direita” e “esquerda” é menos relevante, para entendermos as mudanças na história das ideias políticas ocidentais, do que o conflito entre liberdade individual e doutrinas coletivistas totalitárias que desprezam a noção de autonomia interior e entronizam a sujeição dos indivíduos a alguma entidade grupal supostamente transcendente, seja ela um partido, uma raça, uma nacionalidade ou um grupo de gênero ou de orientação sexual, constituindo o que a filósofa chama (de maneira bastante original) de culto das “tribos extemporâneas”.
A autora encerra comentando sobre o valor do legado civilizacional brasileiro, que é, em seu entendimento, avesso a puritanismos e propenso às misturas étnicas, culturais e religiosas, fato que teria nos poupado do culto às tribos extemporâneas que leva às doutrinas totalitárias, cuja manifestação mais explícita se materializou nos Estados-Nação de base étnica, como a Alemanha nazista. Nesse sentido, a experiência brasileira, dentre as nações modernas, seria única, e a sua herança pode, para Frascolla, ser mobilizada como estratégia de combate ao fascismo. Resta saber se a “cordialidade” e o apego ao personalismo, que dariam à cultura brasileira, segundo a autora, uma noção muito robusta de apego à individualidade em detrimento do nivelamento grupal, carrega algo de positivo para nos imunizar dos males do tribalismo.
E a pergunta que não quer calar é a seguinte: até quando as nossas universidades vão continuar, em algumas linhas de pesquisa específicas, difundindo ideias que, de acordo com a conceituação oferecida em “As Ideias e o Terror”, se aproximam claramente de premissas fascistas? É preciso resgatar com urgência o papel da universidade, especialmente da universidade pública brasileira, que deve fomentar, acima de tudo, o amor pela erudição, pela liberdade intelectual e pela busca da verdade, e se distanciar, assim, do irracionalismo e do proselitismo próprio às doutrinas neofascistas disfarçadas de teorias “humanistas” supostamente preocupadas com a “justiça social”. O livro de Frascolla é, além de um bem documentado ensaio de filosofia política, um alerta para essa perversão do humanismo que tem sido difundida através da universidade.
Fernando José Coscioni
Doutor em Geografia Humana pela USP.