A insensatez chegou ao auge durante estes tempos de pandemia.
1.
O fim da Guerra Fria trouxe de volta, do começo do século XX, o sonho iluminista da paz universal. Os monstros ideológicos do século teriam sido derrotados pela racionalidade e eficiência das democracias e, com o advento da internet, um horizonte de liberdade, paz e mútuo entendimento se descortinou sobre a abertura do novo milênio. Foi o tempo de Tony Blair, Bill Clinton, João Paulo II, o Euro, o Mercosul, o fim de longas guerras na África e Ásia, o fim do Apartheid, a trégua entre Israel e Palestina.
O primeiro grande abalo a esse otimismo foi o 11 de setembro. Desde então, de modo crescente, uma sombra de desconforto e suspeita se difunde por setores da opinião pública ocidental e muitos intuem algo intrigante e mal-explicado por trás do movimento aparente dos governos, eleições e economias.
As perguntas mal-respondidas sobre o próprio 11 de setembro (para começar: é tão fácil jogar um avião de grande porte no local mais protegido da Terra, o Pentágono, sem sofrer a menor resistência?), o enigma do patrocínio da elite americana ao agigantamento de um adversário totalitário (a China), a surpresa com o reerguimento súbito da Rússia e seus tentáculos sobre a Europa, o assalto às liberdades individuais nos próprios países “livres”, a reengenharia social cada vez mais intensiva operada pela mídia, o triunfo meteórico dos partidos do Foro de São Paulo – não perderam a Guerra Fria? – em toda a América Latina, estranhas e inquietantes surpresas que propiciaram, nos EUA, o Truth Movement, o Tea Party, os “birthers”, a alt-right, a imensa audiência de figuras como Rush Limbaugh, a eleição de Trump; no Brasil, fez ecoar desde o exílio a voz de Olavo de Carvalho e seu Mídia Sem Máscara.
O fato mesmo de termos como false flag, deep state, inside job – esses popularizados pelas especulações pós-11/9 –, globalismo, governo mundial, terem se difundido, de forma inteiramente paralela às universidades e grandes veículos de comunicação, é sinal do desconcerto com um mundo que se encaixava cada vez menos nas narrativas oficiais.
2.
Tratando-se, em grande maioria, de pessoas comuns perplexas e surpreendidas, pessoas sem formação para a pesquisa histórica e de fontes, sua inquietação, fermentando no ambiente pouco sólido dos fóruns de internet, deu origem a uma infinidade de “teorias da conspiração” com respostas fáceis para enigmas indigestos: é tudo culpa dos pedófilos satanistas do partido democrata; é tudo culpa dos bancos; é tudo culpa da China; é tudo culpa da aliança Rússia-China via o Foro de São Paulo; é tudo culpa das famílias Rockefeller, Rothschild e do Bill Gates etc.
Ou seja, voltamos ao quadro dos anos 30: ordem internacional ameaçada, um mundo em convulsão, coisas indecifráveis se passando nos bastidores e os cidadãos comuns, no meio de tudo isso, caçando com os olhos, à distância, culpados visíveis e facilmente identificáveis. Há 90 anos, a resposta simplista que fez sucesso – e virou governo em alguns países – foi lançar a culpa de tudo em “os judeus”, com todas as terríveis consequências.
3.
Nesse cenário, certos indivíduos ambiciosos, que num mundo estabilizado jamais sairiam das franjas do poder, pois não têm formação nem aparato partidário para liderar um país, tais indivíduos pularam subitamente para o centro do palco por meio das redes sociais, dando eco às inquietações que um público imenso já murmurava há décadas. Sem nada a perder, tocaram em problemas reais que o “establishment” cala ou distorce, tais como o escândalo do aborto livre, a infiltração esquerdista nas instituições, a “bandidolatria”, a parcialidade ideológica da imprensa, o imperialismo chinês, o descontrole migratório, a degradação sistemática da cultura, a perda da identidade nacional etc.
Com isso, atraíram até os lúcidos dentre os descontentes, aqueles que não se rendiam às mais rasas respostas conspiratórias, e deram a impressão de entenderem o caminho a seguir. Ou, pelo menos, se não sabiam bem a solução, conheceriam a armação do problema.
4.
Chegando ao governo, rapidamente baixaram o tom da confrontação “cultural” — nos EUA com a demissão do Bannon, no Brasil com o boicote a iniciativas como o Escola Sem Partido e a recusa em investigar mais a fundo os crimes petistas — e a partir de então tais homens ambiciosos, inesperadamente no poder, buscaram se legitimar tal como seus antecessores do “establishment” haviam feito: sucesso na economia, grandes obras, concessões aos inimigos, afetações de uma falsa segurança e olhos fechados à corrosão das bases da sociedade e da cultura. De vez em quando, sugeriam que um oponente era homossexual ou xingavam de feia a mulher de um adversário para as bases não esquecerem que eles ainda eram os mesmos…
Enquanto isso, as forças do “establishment” na mídia, universidades, entidades “civis” e organismos internacionais usaram habilmente, dia e noite, esses mesmos homens vaidosos e suas idiossincrasias como espantalho e caricatura da multidão dos descontentes e críticos que o processo de governança global tem gerado desde o começo do século. Dessa forma, se você duvida da idoneidade da OMS, por exemplo, será automaticamente tachado – e censurado – como “bolsonarista”, como se questionamentos sobre um órgão internacional fossem o mesmo que o apoio a um governo qualquer.
5.
Ao mesmo tempo, os poucos com alguma formação intelectual e histórica entre a massa dos descontentes, ao invés de buscarem dar consistência e bases mais sólidas ao movimento (que já tinha virado governo nos EUA e Brasil), esses dedicaram-se quase exclusivamente ao ativismo mais panfletário, embarcando nas piores teorias da conspiração que surgiam, apostando que vence quem berra mais, berra mais alto e berra coisas mais doidas. O apoio a iniciativas como o “300 do Brasil”, Pizzagate, QAnon e o negacionismo com a pandemia falam por si.
Ou seja, os mesmos que, com razão, denunciavam o viés da grande mídia — que quase sempre “erra” na mesma direção ideológica –, esses praticam um “jornalismo alternativo” que não se vexa de lucrar com as historinhas mais impossíveis e mirabolantes, com tantos deles trombeteando até esses dias que Trump teria um plano secreto para desmascarar Biden no último minuto com apoio militar ou que Sérgio Moro, na verdade, analisando bem, é um agente à mando de Pequim há muitos anos ou que “todo mundo já sabe” que a prisão do Maduro é “iminente”.
Quando essa insensatez chegou ao auge durante estes tempos de pandemia, com líderes até mesmo “cristãos” chegando ao extremo de incentivar a exposição sem proteção ao vírus nas ruas, ou negando pura e simplesmente as mortes, o “establishment” percebeu acuradamente que a reação, a resistência dos descontentes, fracassou e que chegou a hora de tomar todas as fichas das mãos do seu adversário.
6.
Trump e Bolsonaro cumpriram, sob certo aspecto, um papel análogo a Franco, Salazar, Mussolini, Plínio Salgado, Pétain e vários outros no último século: desviaram um movimento espontâneo de reação numa direção personalista e mitológica, transformando uma parte da população descontente numa massa ultraideológica e animalizada, paranoica e sugestionável, pronta a ser manobrada na direção de interesse do “Duce” e seus arautos, trombeteiros incansáveis do apocalipse.
Quando a morte ou a desgraça tirou aqueles “grandes homens” de cena, tudo se desfez da noite para o dia como num sonho e os que acreditaram ter mudado o rumo da história voltaram para casa cansados e desiludidos. Suas ideias e insatisfações, desacreditadas pelas gerações que os sucederam, foram logo substituídas pelas mesmas ideias e instituições que eles juraram haver sepultado para sempre à sombra do grande homem: a Espanha, dez anos após a morte de Franco, aprovou o aborto sob um governo socialista; Portugal passou por uma reforma agrária confiscatória depois da Revolução dos Cravos e hoje também tem o aborto legal; a França voltou a um republicanismo de esquerda amigável aos comunistas logo após o fim da guerra etc.
7.
Nos EUA, o conservadorismo tem instituições sérias, milhares de livros e revistas, uma história intelectual sólida desde os anos 50 e já esteve no centro do poder com um dos presidentes mais populares: Ronald Reagan. O trumpismo cresceu como um corpo estranho, um parasita que sonhava em substituir o hospedeiro, sugando boa parte de suas energias, forçando conservadores de currículo como Ted Cruz a se submeterem, mas será gradualmente extirpado após este fim explosivo de mandato. Impondo-se pelo magnetismo de um homem e o sucesso econômico por três anos, o trumpismo ficará marginalizado pela vergonha com o modo pelo qual este mandato terminou após os erros e falas atrapalhadas no combate à pandemia. Em política, são as últimas impressões as que ficam. Acredito mesmo que Trump vai sair do partido republicano, ao qual só aderiu em 2009.
Já no Brasil, sem tradição conservadora alguma, sem nomes de direita, centro ou esquerda para fazer frente à popularidade automática do dono do cofre, do presidente de uma república com tantos miseráveis, em todos os sentidos, é certo que Bolsonaro vai se reeleger, numa votação com altíssima abstenção e votos nulos, já que seus amicíssimos no Congresso saberão protegê-lo da insatisfação de seus próprios ex-eleitores que queiram impichá-lo agora. Mas, no novo congresso que assumirá em 2022, fatalmente virado à esquerda (basta ver o desempenho do PSOL em 2020 no país todo), uma centésima nova tentativa de impeachment, recheado de razões, encontrará ouvidos bem mais receptivos.
8.
De um ponto de vista mais seriamente conservador, o bolso-trumpismo é, como diria Capitão Nascimento, tática sem estratégia, uma visão só de curto prazo. Linha de ação baseada numa visão “populista” e planificada da ação política em contradição com todo o pensamento conservador: não é “juntando gente” revoltada, passional, que se constrói um movimento que possa ser agente histórico. Arraia-miúda, bolsonarista de live no youtube, não faz história. Essas pessoas são arrastadas ou pisadas pela história, mas não podem fazê-la.
A história se faz dos mais qualificados aos menos, ocupando ou não cargos oficiais. Infelizmente, a escassez de pessoas qualificadas por aqui permitiu que um político esperto, com a ajuda dos filhos, encantasse uns milhares de jovens semi-qualificados (na qualidade de intelectuais e influenciadores), como era eu e outros tantos naqueles idos de 2014-2018, e nos arregimentasse informalmente na consecução dos seus sonhos personalistas e demagógicos, iludindo-nos que, ao fortalecê-lo, traríamos junto nossas ideias ao poder. Ora, se nós não éramos fortes para trazermos nossas ideias ao poder por nós mesmos, muito menos seríamos para forçar uma pequena peça da engrenagem do sistema a fazê-lo em nosso lugar.
E o fim dessa história já está mais do que evidente: Bolsonaro sai ou é “saído”, as ideias conservadoras passam sem serem cristalizadas em leis ou instituições, a massa amorfa (e, na maioria, idosa) dos indignados vai para casa esbravejar nas redes sociais, no Whatsapp, no Telegram, no Parler, nos churrascos de família e nós, jovens intelectuais conservadores, ficamos à míngua, mais ostracizados que nunca, sem apoio e sem perspectivas de ação cultural organizada.
9.
Quanto aos demais descontentes do “consenso global”, que são milhões ao redor do mundo, estamos mais orfãos do que nunca. Não surgirá outro Trump ou Bolsonaro “melhorzinho” tão cedo.
Agora é estudar e rezar para que uma nova tentativa de reação seja liderada por pessoas de verdade, com consistência, saídas das “frentes de batalha” cultural, e não por líderes tão improvisados. Que nos sirva de exemplo a história da Polônia, onde a reação contra o comunismo e o globalismo não partiu do oba-oba eleitoral, de live para arrecadar doações no Youtube, mas das famílias e da fé.
Alguns ainda vão descobrir, tarde demais, que não é fazendo fã-clube de político que vamos salvaguardar nossas liberdades e valores.
Guilherme Hobbs
Programador web em São Paulo. Estudioso de história e política.