por Daniel Lopes – Valsa com Bashir é a história de um massacre e a história de uma memória recuperada. Ari Folman, co-autor (os desenhos são de David Polonsky), muitos anos depois da Guerra do Líbano do início da década de 80, vai atrás de ex-soldados que participaram da campanha. Através da memória viva que […]
por Daniel Lopes – Valsa com Bashir é a história de um massacre e a história de uma memória recuperada. Ari Folman, co-autor (os desenhos são de David Polonsky), muitos anos depois da Guerra do Líbano do início da década de 80, vai atrás de ex-soldados que participaram da campanha. Através da memória viva que esses soldados tem da guerra, Folman quer recuperar a sua própria, que se encontra obstruída. Em uma tira, um amigo lhe diz: “Há um mecanismo humano que bloqueia nosso acesso a áreas que queremos manter desconhecidas. Sua memória só o conduzirá até onde você quiser ir.”
Pois agora Ari Folman quer ir até o fim. Na medida em que os ex-combatentes revivem momentos em que suas divisões do exército israelense cercam e invadem Beirute, ele vai relembrando que estava lá.
O Bashir do título é, claro, Bashir Gemayel. Político cristão, foi eleito em 1982 para a presidência do Líbano, com o apoio de Israel. No entanto, é assassinado dias antes de assumir, no meio de uma guerra civil. Tal evento dramático da história libanesa precipitaria outro não menos negro: como vingança pelo assassinato de seu líder, milicianos cristãos das Falanges Libanesas invadiram os campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila e, durante 3 dias do setembro daquele ano, executaram famílias inteiras, homens, idosos, mulheres e crianças, não sem antes riscar crucifixos nos peitos de vários. Alguns estimam em mais de 3 mil o número de mortos.
É a esses dias de massacre que as recordações de Ari Folman acabam lhe conduzindo. Ele definitivamente esteve lá, muito próximo do ocorrido. Tinha 19 anos e, como seus companheiros, sabia o que estava acontecendo e não fez nada para impedir. É que as forças israelenses cercavam os campos e, por ordem superior, deixaram as Falanges fazerem o trabalho sujo – um dos ex-combatentes lembra como ligou certa noite para o general Ariel Sharon: “Eu disse: Arik, ouvi dizer que os palestinos estão sendo massacrados pelos cristãos. Precisamos impedir isso. Ele me perguntou: ‘Você viu?’ Eu disse, ‘Não, mas há testemunhas suficientes.’ Ele disse, ‘Certo, obrigado por me alertar.’ E não disse mais nada. Nenhum ‘Vou checar’, ‘Tomarei providências’. Ele disse: ‘Obrigado por me informar, feliz ano-novo pra você’. E voltou a dormir.”
Alguns oficiais israelenses chegaram mesmo a lançar sinalizadores naquelas noites, para que a área ficasse iluminada e, assim, o trabalho dos milicianos mais fácil.
Ainda mais se comparados ao estilo gato-e-rato de Maus, de Art Spiegelman, os traços de David Polonsky tentam desesperadamente capturar o real (reviver o real). Mas até que ponto isso é possível, ainda mais em se tratando da história de uma guerra que desagua num massacre de civis? Sabemos que certos acontecimentos se negam a ser retratados fielmente por meio de desenhos ou palavras. Talvez por isso, nas duas últimas páginas de Valsa com Bashir há uma espécie de rendição, e os desenhos dão lugar a imagens reais das vítimas em Sabra e Chatila. Fotografias. Aquelas imagens, sim, dão ao real sua verdadeira dimensão. Não dão?
::: Valsa com Bashir ::: Ari Folman e David Polansky ::: trad. Pedro Gonzaga ::: L&PM, 2009, 118 págs. ::: compare preços :::
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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