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A nova ficção de Coetzee

por Daniel Lopes (28/04/2010)

por Daniel Lopes Verão é o terceiro volume da autobiografia ficcionada de J. M. Coetzee. No entanto, é preciso dizer que poucos autores são tão dispostos a sacrificar o biográfico pelo fictício. É até possível, embora eu duvide, que todos os relatos de Infância (1997), Juventude (2002) e Verão sejam fidedignos ao que de fato […]

por Daniel Lopes

-- "Verão", de J. M. Coetzee --

Verão é o terceiro volume da autobiografia ficcionada de J. M. Coetzee. No entanto, é preciso dizer que poucos autores são tão dispostos a sacrificar o biográfico pelo fictício. É até possível, embora eu duvide, que todos os relatos de Infância (1997), Juventude (2002) e Verão sejam fidedignos ao que de fato ocorreu na vida de Coetzee. Mas o tratamento que o autor dá aos livros é tão compromissado com a boa literatura e o papel de terceiros é tão maior nas obras (na mais recente, em especial) que o seu próprio, que me decidi por encarar o projeto essencialmente como de ficção.

Não é mistério para quem conhece Coetzee a importância que ele dá ao viver para contar a vida alheia, a vida daqueles que em algum momento cruzaram sua vida – ou mesmo dos que nunca cruzaram. Registrar. Contar para não deixar que vidas entrem no oblívio. Essa seria a missão maior do escritor. Em um momento de Verão, quando, conversando com uma prima, John faz referência a um termo em khoi, ela pergunta onde ele aprendeu a língua dos quase exterminados hotentotes. Ele diz que em livros, de forma auto-didata. Ela pergunta se ele também sabe xhosa. Ele responde: “Estou interessado nas coisas que perdemos, não nas coisas que conservamos. Por que eu deveria falar xhosa? Já há milhões de pessoas que podem fazer isso. Elas não precisam de mim.” Ela quer saber com quem ele falará em khoi. Ele: “Você quer mesmo saber?” “Sim, diga. Me responda.” “Com os mortos”, ele diz. “Você pode falar com os mortos. Que, de outra forma – ele hesita, como se as palavras pudessem ser demais para ela ou mesmo para ele – Que, de outra forma, serão jogados no silêncio eterno.”

Ao ler isso, imediatamente lembrei das últimas linhas de Infância. A única vez que fiquei com os olhos úmidos ao ler uma ficção, foi na última página de Infância. É algo que só tem total ressonância no contexto das páginas imediatamente anteriores (mesmo de todo o livro), mas cito os dois últimos parágrafos, que bastam para relacionar com o trecho acima:

“O que aconteceu com os livros da tia Annie?”, ele pergunta depois a sua mãe, quando estão novamente a sós. Ele diz livros, mas quer dizer apenas ‘Ewige Genesing’ em suas muitas cópias.

Sua mãe não sabe ou não vai dizer. Do chão onde ela quebrou a bacia para o hospital para a velha casa em Stikland para Woltemade nº 3 ninguém pensou nos livros exceto talvez a própria tia Annie, os livros que ninguém lerá; e agora tia Annie está deitada na chuva esperando que alguém encontre tempo para entrerrá-la. Resta apenas ele para pensar. Como ele manterá tudo na cabeça, todos os livros, todas as pessoas, todas as estórias? E se ele não as relembrar, quem irá?

Por falar em passagens evocadas, quanto à ambientação do novo romance, ao ler uma das personagens dizer do Karoo, semi-deserto sul-africano, que “O mundo pode ser o mundo de Deus, mas o Karoo pertence antes de mais nada ao sol”, lembrei da narradora de No coração do país (1977), que também a propósito do Karoo, diz: “Parece não haver anjos nesta parte do céu, não haver Deus nesta parte do mundo. Ela pertence apenas ao sol.”

Em Verão, John tem 30 e poucos anos. Coetzee tem hoje 70 anos, ainda deve ter no mínimo mais uma década pela frente para escrever um quarto (e definitivo?) volume de suas ficções com alegada ambição autobiográfica. Mas, mesmo que não escreva, isso não será problema; alguns de seus últimos títulos – Desonra (1999), Homem lento (2005), Diário de um ano ruim (2007) – já trabalharam os temas do intelectual liberal em final de cena e do envelhecimento e morte de forma geral. Os protagonistas desses livros por certo são alter egos de Coetzee.

Aliás, me pergunto se esse “terceiro volume autobiográfico” não guarda mais semelhanças com seus últimos trabalhos do que com os outros “dois volumes autobiográficos”. Afinal de contas, pelo menos tão presente no livro quanto as aventuras nada aventurosas de John, está a situação do pai já bastante encaminhado pela vida. Os dois, John e pai, “socialmente ineptos”, moram juntos em uma casa no subúrbio da Cidade do Cabo, na primeira metade da década de 1970. John está de volta dos Estados Unidos, onde estudou e trabalhou por alguns anos antes de ter problemas com a polícia devido a um não muito esclarecido envolvimento com grupos políticos de esquerda – ao menos é o que imaginam os familiares que não o veem com bons olhos.

O romance é construído a partir de depoimentos de mulheres (e um homem) com quem John se relacionou de uma forma ou de outra nos anos 70. Os depoimentos são colhidos na primeira década deste século por um jovem biógrafo do escritor. Excetuados alguns momentos em que o biógrafo se intromete na narrativa ou quando as depoentes lhe fazem referência direta, os depoimentos funcionam como narrativas em terceira pessoa, nas quais o narrador se comunica, não com um biógrafo ficcional que pesquisa sobre a vida de John Coetzee, mas com o leitor médio que conhece alguma coisa da vida e da obra do Coetzee real – e que, por conhecer esta segunda, saberá muito bem largar a pergunta “Isso realmente aconteceu com Coetzee?” e aproveitar a narrativa.

-- O autor --

Nos depoimentos, John é interpretado. Antes deles, há 14 páginas com reproduções de passagens de seu diário (1972-1975). Aí é o primeiro e único momento do livro em que John poderia ter voz própria, mas eis que aparece quase como uma versão fictícia de si próprio, com direito a texto em terceira pessoa.

John, sujeito acomodado, tem medo de qualquer mudança. Antes de publicar seu primeiro livro, Terras de sombras (1974), sobrevive dando aulas de inglês para estudantes de nível médio. No entanto, segundo um amigo, ele estava fadado a não ter sucesso como professor, fosse no ensino médio ou na universidade: “Talvez se ele tivesse ensinado sânscrito, teria sido diferente, sânscrito ou algum outro assunto em que a convenção permita à pessoa ser um pouco seca e reservada.”

Faz ele mesmo alguns serviços manuais, como reformar a casa e consertar (mal) o carro. Faz isso como um ato de revolta contra a divisão racial do trabalho na África do Sul do apartheid, onde o trabalho braçal era um estigma. Revelou a uma amiga: “Faço trabalho de jardinagem. Faço reparos pela casa. Estou atualmente recolocando a drenagem. Pode parecer engraçado pra você, mas pra mim não é uma piada. Estou fazendo um gesto. Estou tentando quebrar o tabu do trabalho manual.”

Em meio à situação dramática do país, John tem Jesus como um guia – e “onde ele poderia procurar por um melhor?”. Jesus, mas não os cristãos, que afinal de contas são os opressores na África do Sul – “Para passar como um afrikaner nos dias de hoje, você precisa no mínimo votar no Partido Nacional e ir para a igreja aos domingos.”

Deixou aos depoentes a impressão de alguém que não tem jeito para se relacionar com as mulheres amorosamente. Adriana Nascimento, uma bailarina brasileira viúva que morou na Cidade do Cabo com as duas filhas adolescentes, conta de John que “ele me deixou de cara com a impressão, não sei dizer por que, de célibataire. Não quero dizer somente não casado, mas também não apropriado para o casamento, como um homem que tivesse passado a maior parte da vida no sacerdócio e perdido sua virilidade e se tornado incompetente com as mulheres.” A filha mais jovem de Adriana teve aulas de reforço com John, a quem a mãe acusou de assediar a filha (lembrando a situação de David Lurie em Desonra), antes de suspeitar que era a ela, Adriana, ou a ela também, que ele queria assediar.

Uma mulher com quem se relacionou, diz: “Eu nunca tive o sentimento de que ele estava comigo, comigo em toda minha realidade. Ao invés, era como se ele estivesse engajado com alguma imagem erótica de mim dentro de sua cabeça; talvez mesmo com alguma imagem de Mulher, com M maiúsculo.” Conta outra: “Se ele estava apaixonado, não era por mim, era por alguma fantasia que ele concebeu no próprio cérebro e a que deu o meu nome.”

Outro tema constante na obra de Coetzee que também está presente em Verão é o papel desfavorável da mulher na sociedade. Ainda mais se essa sociedade é a África do Sul patriarcal de décadas atrás. Há, por exemplo, uma clara distinção do que é permitido ao homem e à mulher em um casamento. Enquanto Julia, uma das moças que John conheceu, era obrigada a fazer amor às escondida com o protagonista, seu marido Mark, segundo ela própria relata, “estava positivamente extasiado com a instituição do casamento burguês e as oportunidades que ele proporcionava a um homem para fornicar tanto fora quanto dentro do lar.”

E é difícil para o leitor dizer se Julia, mesmo a Julia do século 21, tem ampla consciência da situação da mulher ou se apenas, como reza o lugar comum, já internalizou o preconceito e conta o que conta como quem relata o efeito gravitacional. Veja esse outro trecho do seu depoimento: “A razão pela qual não investi mais em John tem muito a ver, agora suspeito, com seu projeto de se transformar no que eu descrevi para você, um homem gentil, o tipo de homem que não faria nenhum mal, nem mesmo a um animal estúpido, nem mesmo a uma mulher” (grifo meu).

::: Verão ::: J. M. Coetzee ::: Companhia das Letras, 2010, 280 páginas :::
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Daniel Lopes

Editor da Amálgama.

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