Christopher Hitchens, na Slate / 12 de abril Em 2002, de acordo com o devoto colunista católico Ross Douthat, o cardeal Joseph Ratzinger pronunciou as seguintes palavras para uma audiência na Espanha: “Estou pessoalmente convencido de que a constante presença na mídia dos pecados de padres católicos, especialmente nos Estados Unidos, é uma campanha planejada… […]
Christopher Hitchens, na Slate / 12 de abril
Em 2002, de acordo com o devoto colunista católico Ross Douthat, o cardeal Joseph Ratzinger pronunciou as seguintes palavras para uma audiência na Espanha:
“Estou pessoalmente convencido de que a constante presença na mídia dos pecados de padres católicos, especialmente nos Estados Unidos, é uma campanha planejada… para depreciar a igreja.”
Em 10 de abril, o New York Times – o aparente centro dessa “campanha planejada” – reimprimiu uma cópia de uma carta pessoalmente assinada por Ratzinger em 1985. A carta estimulava leniência no caso do reverendo Stephen Kiesle, que havia amarrado e torturado sexualmente dois pequenos garotos numa propriedade da igreja na Califórnia. Os superiores de Kiesle haviam escrito para o escritório de Ratzinger em Roma, suplicando para que ele removesse o criminoso do sacerdócio. O homem que agora é Sua Santidade o papa, em resposta, estava cheio de conselhos morais. “O bem da Igreja Universal”, escreveu, deveria vir à mente em primeiro lugar. Devia-se entender que “particularmente no que diz respeito à pouca idade” do padre Kiesle, poderia haver grande “detrimento” causado “no interior da comunidade dos crentes em Cristo” se ele fosse destituído. O bom padre tinha 38 anos. Suas vítimas – não que a tenra idade delas, de 11 e 13 anos, parecesse ter importância – foram crianças. Nas décadas seguintes, Kiesle continuou a arruinar as vidas de várias outras crianças e foi finalmente preso por autoridades seculares após denúncia de molestamento grave em 2004. Tudo isso poderia ter sido evitado se ele tivesse sido encaminhado à justiça logo no início e se a diocese de Oakland tivesse chamado a polícia ao invés de escrito para o escritório em Roma onde era a função de Ratzinger amortecer e suprimir tais assuntos penosos.
Contraste isso com o caso ainda mais pavoroso da escola para crianças surdas em Wisconsin, onde foi permitido ao reverendo Lawrence Murphy acesso irrestrito a mais de 200 vítimas incomumente indefesas. Novamente o mesmo padrão: reiteradas petições da diocese local para que o criminoso fosse destituído (“unfrocked” – um termo bizarro se você parar pra pensar) recebidas com pétrea indiferença na burocracia rijamente administrada por Ratzinger. Finalmente, uma suplicante carta para Ratzinger do próprio imundo padre Murphy, queixando-se da fragilidade de sua saúde e pedindo para ser sepultado com todas as honras sacerdotais, em seu hábito. Que foi o que ocorreu. Enfim um apelo humano que não caiu em ouvidos surdos! (Perdoe a expressão.)
Então, em um caso um estuprador de crianças escapou do julgamento e se tornou um habilitado re-ofensor porque era muito jovem. No caso seguinte, um estuprador de crianças foi abrigado depois de uma carreira de tortura sexual de crianças deficientes porque ele estava muito velho! Quanta compaixão.
Deve-se notar, também, que todas as cartas da diocese para Ratzinger e de Ratzinger para a diocese preocupavam-se apenas com uma questão: isso poderia prejudicar a Santa Madre Igreja? Era como se as crianças fossem irrelevantes ou inconvenientes (como no caso dos garotos estuprados na Irlanda, forçados a assinar acordos de confidencialidade pelo homem que ainda é o cardeal do país). Note, em seguida, que existia uma política escrita, de obediência obrigatória e consistente de evitar o contato com a lei. E note, por último, que existia um preconcebido programa de propaganda de Ratzinger de culpar a imprensa se qualquer das condutas criminais e obstruções da justiça se tornasse conhecida.
O auge obsceno disso tudo ocorreu na Sexta-Feira Santa, quando o papa disponibilizou um sermão, lido por um subalterno, em que a exposição dos crimes de sua igreja era relacionada à perseguição e mesmo – esse foi um detalhe impressionante – aos pogroms contra os judeus. Eu nunca antes fui acusado de tomar parte em um pogrom ou linchamento, o que dizer de se juntar a uma turba liderada por crianças surdas estupradas, mas tenho orgulho de participar dessa.
A palavra-chave é Law. A partir do momento em que a igreja deu refúgio ao cardeal de Boston Bernard Law para poupá-lo da inconveniência de responder perguntas sob juramento, ela atraiu para si a metástase desse horror. E agora o tumor subiu exatamente para onde se esperaria – movendo-se do peito para a cabeça da igreja. E por qual poder ou direito o cardeal fugitivo está amparado? Apenas pelo acordo original entre Benito Mussolini e o papado, que criou o pseudo-estado da Cidade do Vaticano no Tratado de Latrão de 1929, o último monumento ao triunfo do fascismo remanescente na Europa. Isso já seria ruim o bastante, exceto que o próprio Ratzinger está agora exposto como responsável pessoal e institucionalmente por obstrução da justiça e proteção e habilitação de pederastas.
Não se deve culpar apenas a igreja. Onde estava a execução penal americana durante as décadas em que crianças eram predadas? Onde estava a lei internacional enquanto o Vaticano se tornava um asilo e fonte de proteção para aqueles que permitiram e executaram a predação? Folheie qualquer das reportagens sobre estupro e tortura infantil na Irlanda, Austrália, Estados Unidos, Alemanha – e saiba que ainda há algo muito pior a caminho. Onde está escrito que a Igreja Católica Romana é o juiz de seu próprio caso? Acima ou além da lei? Apta a utilizar cortes privadas? Permitida a usar fundos doados pelos fiéis para pagamentos de silenciamento a vítimas e suas famílias?
Há duas escolhas. Podemos engolir a vergonha, enrolar a Primeira Emenda da Constituição e admitir que certos crimes abomináveis contra cidadãos inocentes são assunto privado ou não são crimes se cometidos por padres e perdoados por papas. Ou talvez possamos nos livrar do terrível acumpliciamento que apresenta esse crime contínuo como um “problema” para a igreja e não como um ultraje às vítimas e ao sistema judicial. Não existe um advogado-geral nos EUA que se determine a representar as crianças? Ninguém no pomposo departamento da não-imunidade do advogado-geral dos Estados Unidos? Em Londres, como já informado pelo Sunday Times e pela Press Association, alguns experientes advogados de direitos humanos estarão desafiando o direito de Ratzinger de pousar na Grã-Bretanha com imunidade em setembro próximo. Se ele escapar, que escape, e que os fiéis se sintam orgulhosos de seu supremo líder. Mas isso podemos prometer, agora que sua própria assinatura foi encontrada na carta que deu permissão ao padre Kiesle para estuprar: haverá apenas um tema de conversa até Ratzinger decidir cancelar sua visita, e apenas um tema se ele decidir levá-la a cabo. De qualquer forma, ele será lembrado apenas por uma coisa quando já estiver há muito tempo morto.
* tradução: Daniel Lopes. O original, aqui.
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