por Pádua Fernandes
Quando um autor conhecido por sua prosa publica, em plena maturidade, um livro de poesia, em geral suscita espanto entre os leitores. Trata-se de algo muito diverso do prosador consagrado cujos poemas, produção abandonada da juventude, vêm ou voltam à tona – como foi o caso de Magma, de João Guimarães Rosa, escrito antes dos trinta anos e que o autor jamais publicou. Naquela hipótese, trata-se não de um pecadilho ou deslize da juventude, mas de uma opção estética do escritor consciente dos seus meios de expressão.
Zulmira Ribeiro Tavares, a grande ficcionista, causa agora esse espanto com Vesuvio – com o título em italiano, a trazer mais uma estranheza para os leitores de sua prosa.
O espanto é menor, porém, para os leitores de poesia que conhecem a autora, senão desde Termos de comparação, de 1974, que combinava o verso com a prosa de ficção e o ensaio, ao menos desde a importante antologia 26 poetas hoje, organizada por Heloísa Buarque de Holanda.
A sua poesia dos anos 1970 era diferente da que publica hoje, e também dos demais escritores recolhidos no livro de 1976, como a própria organizadora ressaltou na introdução. Ana Cristina Cesar, em conflituosa conversa publicada no número 2 ( agosto de 1976) da revista José a respeito da antologia 26 poetas hoje (em que ficava claro o incômodo de Luiz Costa Lima com todo o projeto, e certa incompreensão dos críticos presentes a respeito das poéticas envolvidas) afirmou que Zulmira “quase que” parodiava Cabral e Drummond.
A antologia incluiu alguns nomes que não chegaram enfim a constituir uma poesia interessante, e outros que a abandonaram por outros caminhos (como Roberto Schwarz). Mas esse não foi o caso de Zulmira Ribeiro Tavares. Talvez fosse mais exato atribuir-lhe a qualidade de poeta bissexta. As décadas seguintes foram de prosa para ela. Porém Vesuvio reúne, além dos inéditos, poemas já publicados a partir do fim da década de 1990.
Vilma Arêas, na orelha, afirma que o título (do livro e de um dos poemas) “não significa o vulcão real, mas sua imagem num desenho fadado ao fracasso, além do ‘canal de cinzas’ que permite o balanço nada solene da vida”. Com efeito, esse balanço aparece em vários poemas, mesmo nos de caráter mais metalinguístico, e é isso que confere unidade ao livro, e não a divisão em manchas temáticas, que foi evidentemente imposta a posteriori e poderia ter sido dispensada.
É impressionante, porém, que a escritora logre unificar esse balanço da vida com a metalinguagem, tornando-os indistintos. A metalinguagem também aqui é mecanismo de um balanço do fim, do veneno no coração das coisas que faz o pelo dos poemas cair:
[…] Ouça
o poema uma vez e outracomo ratos miúdos e prolíficos
sujos da miséria e de seus ventres envenenados
ao morrer. [p. 31]
Essa poesia deriva de uma consciência da finitude. O outono, estação milenarmente na poesia europeia associada ao declínio, é assim invocado em mais de um momento, especialmente em “Europeia” e no último poema, glosa do poeta português Ruy Belo. No Brasil, país em que as estações do ano são menos marcadas, o outono não se presta bem a essa melancolia, por isso creio que as referências à Europa, inclusive no título em italiano do vulcão que soterrou Pompeia, sejam antes invocadoras de um velho mundo que passa ou já passou, memória ainda candente da cinza: “Perto do Vesuvio, em esfuminho/ o perfil de teu amor esvaecido/ há tantos anos.” [p. 12].
A autora chega a uma bela síntese do livro no último poema, “Proposições com pássaros e folhas que o observador estende ao engenho humano com certa referência ao coração”, que Vilma Arêas, na orelha, destaca. Ele já havia sido publicado. A revista Inimigo Rumor, em sua fase luso-brasileira, encomendou a muitos dos melhores poetas da língua portuguesa glosas de poemas de Ruy Belo. No número 15, do segundo semestre de 2003, foi publicada a “réplica” de Zulmira a “Algumas proposições com pássaros e árvores que o poeta remata com uma referência ao coração”, do poeta português, que afirma amar as árvores que dão pássaros em vez de frutos.
Ela põe o poema dele de cabeça para baixo, desvelando a metáfora desde a primeira frase, “Folhas de árvores são pássaros planadores” e ultrapassando-a. Ela revela outra coisa, “que tais pássaros planadores, conhecidos vulgarmente como folhas, abrigam em seu interior impulsos precisos que os dirigem pelos declives do ar à terra de sua breve vida.”
Eis a resistência das folhas e, por isso, seu caráter de pássaro: “não perdem as cores com a morte”. No outono, “seu vermelho denso do sangue envilecido” faz lembrar “a superfície de antigos engenhos voadores depositados no tempo e impressos na história dos homens como ferrugem e fogo.” [p. 90 no livro, 44 na revista].
Esse poema força a releitura do livro: a morte é a todo momento anunciada. Temos o afogamento do surfista, o menino que pensa em suicídio no cemitério ao visitar o túmulo de mortos “de outros”, mas também na natureza: “Vestem-se os peixes de preto para a morte./ Mas primeiro suas escamas relampejam/ como nunca antes. Como nada igual.” [p. 57]. Esse brilho é a poesia, e aquela resistência.
As produções humanas carregam essa marca da finitude. “Choro” [p. 41], dedicado a Pixinguinha, em uma imagem quase proustiana, as finas sombras dos mortos projetadas contra os muros são assimiladas às cordas de violas. Esse é o instrumento do poeta? Se assim é, mesmo os fantasmas falsos, com “um grande lençol branco jogado”, de fato existem e “são os mais temíveis”, como escreve em “O paradoxo dos fantasmas” [p. 14-15].
Do que se trata? Da aparição, senão do inorgânico, do não-humano como algo que desfaz o sentido e relembra a presença da morte:
Será o desmonte da verdade.
Há silêncio na sala
De voz humana – ApenasRessoa como pancadas
batendo contra a vidraça
o grito da maritaca. [p. 81]
Um grito inarticulado carrega o sentido de todos os discursos? Essa é a lucidez cortante desta grande poesia.
::: Vesuvio ::: Zulmira Ribeiro Tavares :::
::: Cia. das Letras, 2011, 96 páginas ::: compre no Submarino ou na Livraria Cultura :::
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