Ciência

O que é mais mágico que a realidade?

por Carlos Orsi (05/04/2012)

"A Magia da Realidade" é um livro infantil ou, talvez melhor dizendo, um livro para pais e filhos lerem juntos

"A magia da realidade: Como sabemos o que é verdade", de Richard Dawkins

Em um dos ensaios de seu volume Pluto’s Republic, o biólogo britânico e ganhador do Nobel de Medicina de 1960 Peter Medawar repreende o antropólogo francês Claude Levi-Strauss por ter escrito, em seu clássico La Penseé Sauvage, que explicações miticas são “tão válidas” quanto as científicas.

Medawar, famoso pela pena afiada – sua devastadora dissecação de Teilhard de Chardin é um clássico da manipulação virtuosa do frio aço do fino humor britânico –, ironiza o tom de embevecida aprovação com que Levi-Strauss descreve a crença de certos povos siberianos, de que o bico do pica-pau é um amuleto contra a dor de dente. “Será que alguém que esteja realmente sofrendo de dor de dente não preferiria uma linha de pensamento mais pragmática?”, pergunta, inocentemente, o inglês.

Peter Medawar morreu em 1987, aos 72 anos. Sob muitos aspectos, Richard Dawkins é seu principal herdeiro intelectual no mundo do ensaio e da polêmica. Em seu mais recente livro lançado no Brasil, A Magia da Realidade, Dawkins retoma o tema da alfinetada do velho mestre biólogo no velho mestre antropólogo e o leva além: seu objetivo não é apenas apontar o fato de que as explicações científicas são mais úteis, do ponto de vista pragmático, que as míticas, mas também mais fascinantes. Há mágica e poesia na ciência, eis seu argumento, desde que saibamos enxergar. Ou, como ele escreve:

Quero mostrar a você que o mundo real, como é entendido cientificamente, tem sua própria magia. Eu a chamo de magia poética, uma beleza inspiradora que é ainda mais mágica porque é real e podemos compreender como funciona (…) É absolutamente fascinante. Fascinante e real. Fascinante porque é real.

A Magia da Realidade é um livro infantil ou, talvez melhor dizendo, um livro para pais e filhos lerem juntos. Está dividido em capítulos que representam o tipo de pergunta que cedo ou tarde toda criança faz, e que tradicionalmente são respondidas com contos de fadas ou paráfrases bíblicas – Quem foram os primeiros seres humanos? De onde vem o arco-íris? Como tudo começou? – e oferece versões simples, poéticas e objetivas das respostas encontradas pela ciência.

Mesmo os detratores de Dawkins reconhecem seu enorme talento para a exposição e a explicação – “Dawkins é ótimo para tratar de ciência, é uma pena que se meta a dizer bobagens sobre religião” é uma queixa-clichê – e A Magia da Realidade está bem à altura de sua obra de divulgador. Talvez até mais, pois o livro, escrito com o propósito de ser acessível ao leitor infantil, simplifica ao máximo, sem idiotizar. E cada explicação funciona como um trampolim para que Dawkins se lance numa verdadeira cornucópia de temas científicos: espectrografia, efeito Doppler, seleção natural, o conceito de “modelo científico”, epistemologia (o subtítulo do livro, afinal, é “Como sabemos o que é verdade”)… Há até uma citação de Wittgenstein. Escrevi que se trata de um livro para crianças? Bem, também serve para adultos: se você é um cara “de humanas” que só vai ler um livro de “hard science” na vida, leia A Magia da Realidade.

Para tudo isso funcionar, claro, as ilustrações de Dave McKean são um apoio precioso. Conhecido dos fãs de quadrinhos (ao menos, dos mais antigos) como o ilustrador de Asilo Arkham (a infame graphic novel em que o Coringa passa a mão na bunda do Batman) e, especialmente, como o capista da série Sandman de Neil Gaiman, McKean cria uma mistura de ilustração e infografia que é uma festa para os olhos e uma sustentação firme para o texto. A sequência de reconstituições de ancestrais humanos que percorre o capítulo sobre a origem do homem é de tirar o fôlego: tão surpreendente quanto comovente. O poder dos desenhos de McKean fica ainda mais claro na edição interativa do livro (sobre a qual, mais a respeito adiante).

-- O autor --

Cada capítulo também traz um mito a respeito do mesmo assunto, e Dawkins coteja a versão mítica com a científica, sempre em detrimento da primeira: mesmo reconhecendo a beleza criativa dos mitos, o autor é firme em manter, a todo tempo, a distinção entre ficção agradável e explicação real. Entre os mitos, inclui narrativas de povos indígenas de várias partes do mundo, lendas nórdicas e, no que provavelmente irritou e irritará multidões, episódios bíblicos.

Dawkins tem ainda a rara humildade de admitir que não sabe algumas coisas, que certos assuntos estão além de sua área de especialização. Essas admissões aparecem principalmente no capítulo sobre a origem do universo. “Não entendeu?”, pergunta ele, a respeito do conceito de que não teria existido um tempo antes do Big Bang. “Nem eu”.

Os dois últimos capítulos são os mais filosóficos e, para certas pessoas, polêmicos, intitulados “Por que coisas ruins acontecem?” e “O que é um milagre?”. Neles, Dawkins apela para a teoria da evolução, psicologia, teoria das probabilidades e simples bom-senso para tirar o gás metafísico dessas questões que, normalmente, são tidas como coisas que estão fora do escopo da ciência.

A versão brasileira do livro é um volume em capa-dura, da Companhia das Letras, traduzido por Laura Teixeira Motta. Tradutora que, aliás, merece cumprimentos por algumas boas soluções que encontrou: no original britânico, Dawkins compara o inglês contemporâneo ao de Chaucer, para traçar um paralelo entre a evolução das espécies e a da língua. A tradutora troca inglês por português e Chaucer por Pero Vaz de Caminha, o que faz muito mais sentido para o leitor brasileiro. (Agora, sendo chato, implico só um pouquinho: por que não Camões?)

Mas também existe uma edição internacional, em inglês, interativa, vendida como “app” para iPad, que inclui áudios narrados pelo próprio Dawkins e versões jogáveis de várias ilustrações. Por exemplo, é possível “brincar” de seleção natural, escolhendo quais sapos de uma população vão viver para compor a geração seguinte, ou ajustar o ângulo e a força de um canhão que, posicionado no polo norte, precisa pôr uma bala em órbita da Terra.

Se o livro impresso é fascinante, a versão interativa é imersiva – você some lá dentro, e só volta aqui para fora quando forçado. Do ponto de vista didático, o livro interativo é uma ferramenta muito mais poderosa, já que, a partir dos jogos, é possível realmente assistir aos princípios científicos em ação. A Companhia das Letras, que curte bem um hype, poderia contratar um ator global para dublar as narrações de Dawkins e fazer sua versão. Seria um serviço à educação nacional.

Tenho um sobrinho que, em breve, completará três anos. Se fossem 13 (ou mesmo 10), ele ganharia de presente A Magia da Realidade.

::: A magia da realidade ::: Richard Dawkins (trad. Laura Teixeira Motta) :::
::: Companhia das Letras, 2012, 272 páginas :::
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Carlos Orsi

Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.

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