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"Expurgo", de Sofi Oksanen, coloca uma jovem frente a sua tia-avó no que sobrou de um país torturado

"Expurgo", de Sofi Oksanen

O enredo desse terceiro romance da jovem autora finlandesa Sofi Oksanen não é complexo. Os pontos que ligam as personagens principais, pontos sobre os quais pretende-se fazer algum mistério, são em parte adivinháveis bem antes do final. Um bocado da expectativa criada no decorrer da leitura desaba diante dos últimos capítulos. O forte é a interação direta entre as personagens, sempre ardente, e o paralelismo de sentimentos entre as duas principais, a jovem Zara e a velha Aliide. É por isso que não foi surpresa se inteirar, após a leitura, do fato de que Expurgo surgiu primeiro como uma peça, em 2007, e só no ano seguinte foi adaptado para o romance. Sem dúvida funcionou melhor no teatro.

Ainda assim, é um livro interessante.

Em um vilarejo da Estônia, no ano de 1992, a velha e solitária Aliide se depara, através da janela, com um corpo em seu jardim. O corpo tem vida, e é da menina Zara. Como Expurgo vai e vem no tempo, o leitor logo sabe que Zara saiu de Vladivostok, Rússia, em 1991, com o projeto de uma vida melhor no Ocidente. Mas quem estava lhe vendendo a promessa estava na verdade preparando-lhe uma armadilha. Em breve, a menina terá caído na rede de prostituição que levou incontáveis jovens da finada União Soviética para bordéis europeus. No caso de Zara, seu destino é uma espelunca de Berlim. Durante uma viagem pela Estônia com seus dois “proprietários”, ela consegue escapar e, de posse de um mapa, consegue chegar à casa de Aliide.

Quem lhe dera o mapa? Quem lhe falara de Aliide? A avó, Ingel, ainda em Vladivostok. Ingel, estoniana que, na Rússia, ensinou o estoniano a Zara, é ninguém menos que a irmã de Aliide, deportada do país natal em 1950 junto com a filha Linda, devido a seu envolvimento com Hans Pekk, estoniano membro da resistência nacional à ocupação soviética pós-guerra. Todo esse pano de fundo familiar de Zara o leitor também sabe praticamente de cara. Mas Aliide, que passa a abrigar a menina em fuga, só saberá dos fatos bem mais à frente – e uma das tensões bem sustentadas no romance de Oksanen é exatamente essa angústia de saber como a tia-avó descobrirá e reagirá diante da verdade sobre Zara.

Por enquanto, Zara sente vergonha. Vergonha pelos inenarráveis terrores pelos quais teve que passar como prostituta. Vergonha, os flashbacks logo nos revelarão, é um sentimento que também acomete Aliide. Mas a vergonha de Aliide é diferente. É a vergonha da culpa. Caída nas guarras de cafetões violentos, Zara poderia ter feito pouco diferente do que foi forçada a fazer em Berlim – talvez apenas se suicidar; sua fuga arriscada por pouco não acabou sendo isso. Com Aliide foi diferente. Ela colaborou com a ocupação comunista. Não por convicção ideológica. Mas por comodismo e, principalmente, inveja.

Quando jovem, Aliide queria ter Hans Pekk para si. Mas o rapaz se interessou por, casou com e engravidou sua irmã, Ingel. Quando surgiu em seu caminho o camarada Martin, “um dos líderes do partido”, Aliide logo se casa. Esse arranjamento acaba por lhe garantir um bom emprego de contadora. O desconforto de Aliide com Martin é claro. Eis um homem pegajoso (“Quando Martin chegou ao lado dela e se curvou para beijá-la na testa, sua mão encostou num dos peitos dela e o apertou de leve. A lã do casaco dele raspou em sua orelha e uma marca úmida foi deixada em sua fronte.”). Eis uma presença indesejável (“… seu [Aliide] bom humor retornava, mesmo que Martin não fosse se ausentar aquela noite.”).

-- A autora --

Quando esse homem seu marido lhe chama até a prefeitura para confidenciar algo, no entanto, Aliide vê uma oportunidade de ouro para se livrar da irmã e da sobrinha. O camarada Martin lhe mostra uma lista com nomes de estonianos que em breve serão deportados para campos russos, na condição de parentes de “criminosos”. Os nomes de Ingel e Linda estão lá. O teste que Martin está colocando para Aliide é evidente: se a esposa e a filha do estoniano antissoviético Hans Pekk tiverem fugido de casa no dia marcado para a deportação, isso terá sido porque Aliide lhes alertou, portanto entregando que coloca a causa operária abaixo de interesses comezinhos como a própria família. Esse não é o tipo de mulher com quem Martin gostaria de passar o resto de seus dias. Para sua felicidade, a esposa e a filha do nacionalista Hans são deportadas com sucesso.

E também para felicidade de Aliide. O que ocorre é que Hans, tido por muitos como morto desde 1945, está escondido em um quartinho da casa de Aliide/Ingel. Com Ingel e Linda deportadas, e com Martin a maior parte do dia no trabalho, Aliide poderá enfim realizar o desejo de passar a maior parte do tempo com Hans, sozinhos, em sua própria casa. Esse é, senhoras e senhores, o cúmulo do egoísmo – ah!, se o camarada Martin soubesse…

Porém, para decepção de Aliide, sua presença incomoda Hans tanto quanto a presença de Martin incomoda ela própria. Assim, o estoniano prefere ficar em seu quartinho insalubre, metido com seus diários, do que diante da cunhada.

Isso são tragédias familiares ligadas a tragédias nacionais. Ou melhor, à tragédia estoniana. A nação sofreu ocupada por nazistas, e depois sofreu ocupada por comunistas. Hans Pekk não se encheu exatamente de glórias quando da ocupação alemã. Mas nem por isso seu diagnóstico da Estônia comunista é menos exato – “um governo do Mal”. Duas vezes junho, romance de Martín Kohan que se passa na Argentina da idade das trevas, abre de forma perturbadora, já situando o leitor no centro daquele outro regime do mal: “O caderno de notas estava aberto, no meio da mesa. Havia uma só frase nessas duas páginas que estavam à vista. Dizia: ‘A partir de que idade se pode começar a torturar uma criança?’”.

Eu me vi instintivamente pausando para reavivar essas linhas do Kohan quando – no ponto de Expurgo em que Aliide, Ingel e a filha desta, Linda, de sete anos, estão sendo interrogadas na sede da prefeitura da cidadezinha estoniana – Sofi Oksanen escreve, no correr da narrativa, que “Linda foi trazida. Sua blusa já não tinha botões, e ela tinha que segurá-la com as mãos para mantê-la fechada”.

::: Expurgo ::: Sofi Oksanen (trad. Julián Fuks) :::
::: Record, 2012, 350 páginas :::
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Daniel Lopes

Editor da Amálgama.

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