Entre vaias ensandecidas de plateias incapazes de admitir sequer ouvir um discurso que não seja 100% de acordo com seus preconceitos, a chapa Reação chamou a atenção do país inteiro.
[ nota do editor: o Flavio, colaborador do nosso site, fez parte da chapa Reação, que ficou em segundo lugar na disputa pelo DCE da USP. ]
Há tradições universitárias tão arraigadas que aparentam ser naturais. Durante as últimas décadas, a maior e mais assustadora delas parecia ser o trote. Humilhantes e violentíssimos, tinham o fito de deixar marcas na personalidade e até no físico de quem ousasse ter sua primeira grande vitória na vida. Apesar das regras contrárias ao trote, era praticamente impossível imaginar que uma universidade conseguisse viver sem eles, como mostra Glauco Mattoso em seu ensaio O calvário dos carecas. A entrada na universidade era um rito de passagem envolto em medo.
Os trotes atemorizavam com razão, mas mal sabiam os não-iniciados o que é o comunismo.
Tal como o trote, outra constante numa universidade é o famoso “movimento estudantil”. Embora o termo remeta à consciência política jovem, quem já travou contato com o tal movimento sabe que o idealismo romântico pouco se coaduna com a realidade. Desde a ditadura militar, as universidades, sobretudo em seus cursos de Humanidades, são infectadas por radicais de extrema-esquerda – pessoas que subtraem suas leituras a Marx e marxistas, e ainda acreditam em socialismo, em luta de classes e em uma possível revanche da Guerra Fria.
Para piorar o quadro, universidades públicas costumam fornecer um sem número de benesses para estudantes (ignorando qualquer distinção entre aqueles que estudam e os que apenas se matriculam), que vão de comida semi-gratuita a habitação totalmente gratuita. Podem ser mequetrefes, mas não exigem esforço algum além de enfrentar a burocracia. Com este cenário, há pasto e circunstância para o agrupamento de “alunos profissionais”, ou seja, pessoas pouco interessadas em se formar e contribuir com conhecimento e riqueza à sociedade, e sim a se organizar em partidecos políticos que mal lotam um Fusca. Sua função, ao invés de estudar, se torna ser o braço “jovem” do partido em agitações contra o governo e forças “poderosas”, o que inclui qualquer grupo com mais cabeças do que a quantidade de assentos numa Kombi.
As eleições para o DCE
Na USP, o “movimento estudantil” sofreu a maior sacudida de sua história nos últimos meses. Os fatos são sobejantemente conhecidos: o assassinato do estudante Felipe Ramos de Paiva, 24, no estacionamento da FEA (Faculdade de Economia e Administração); o convênio com a PM para aumentar a segurança no campus; a prisão de alunos portando maconha; o quebra-quebra tentando expulsar a PM do campus; a invasão da administração da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) e da reitoria; a reintegração de posse; o golpe que adiou as eleições para o DCE (Diretório Central dos Estudantes).
Apesar dos pesares, estas últimas eleições, definidas na sexta-feira (30/03), tiraram o sono de um movimento em letargia há mais de duas décadas. Há mais de duas décadas, facções extremistas lutam pelo controle do DCE. As eleições são verdadeiras disputas entre a extrema-esquerda, a extrema-extrema-esquerda e a extrema-extrema-extrema-esquerda. Os alunos, então, dividem-se entre dois grupos rigidamente delimitados: os que acreditam haver diferenças substanciais entre PSTU e PCO e os que ignoram de todo o pleito, visto que é difícil pensar em alguma coisa que o DCE já tenha feito (andando pelo campus, a maioria absoluta das unidades sequer sabia que havia eleições para o DCE, e geralmente mal se lembravam do que era o órgão).
Desta vez foi bem diferente. Uma chapa tinha propostas claramente não-esquerdistas para o DCE. Ao invés de assembleias organizadas a toque de caixa e palavras de ordem vazias de sentido como “Fora PM!”, a chapa pretendia usar os meios tecnológicos mais óbvios para atingir mais alunos interessados em ter a sua opinião ouvida: votações eletrônicas através do número USP, pelo próprio sistema online por onde são feitas as matrículas. Era um meio genial, de tão óbvio, de se democratizar as decisões que dizem respeito aos alunos, fazendo com que a maioria da USP fosse consultada, ao invés de ter assembleias repetidas ad nauseam apenas para se obter o resultado que a mesa já espera obter à força.
A chapa, como muitos no Brasil já sabem, é a chapa Reação. Apesar de não obter o primeiro lugar, foi o assunto das eleições. As verdadeiras estrelas de todos os debates. Até agora, é difícil até entre a maioria dos alunos da USP lembrar qual o nome da chapa vencedora das eleições.
Entre vaias ensandecidas de plateias incapazes de admitir sequer ouvir um discurso que não seja 100% de acordo com seus preconceitos, a chapa Reação chamou a atenção do país inteiro. O programa de praticamente todas as chapas concorrentes, não tendo elas proposta alguma além dos chavões mela-cuecas de sempre, usualmente continham diversas referências à chapa Reação. Iniciou-se uma campanha difamatória violentíssima (incluindo calúnias pesadas) baseada no medo reginaduartístico. Segundo se propagava, a chapa Reação era fascista, burguesa, neoliberal, malufista, privatizante e reacionária, e caso ganhasse, iria privatizar a Universidade, aumentar o preço do Bandejão, emparedar a favela da São Remo do lado da Cidade Universitária, usar ônibus para expulsar os pobres da Universidade e envenenar a maçã da Branca de Neve.
Foi uma batalha extremamente desproporcional. Antes de mais nada, em nível físico: foram pouco mais de 40 alunos da Universidade enfrentando quatro outras chapas ajudadas por uma estrutura partidária milionária, cada qual com décadas de expertise em fazer política nos níveis em que acredita ser possível obter uma vitória (com a provável exceção do PCO, que dificilmente ganha eleições sequer pra mascote de sindicato).
Os membros e apoiadores da chapa Reação distribuíram pequenos panfletos e tentaram, no boca a boca durante pouco mais de uma semana, avisar a Universidade que eles existiam e que, afinal, pela primeira vez, havia pessoas interessadas em modificar o modelo de assembleísmo e de brincar de Tchecoslováquia que impera não apenas na USP. Algumas raras faixas mostravam a chapa para algumas unidades menos violentas, enquanto seus cartazes foram arrancados em menos de 45 minutos das paredes da FFLCH, a faculdade com os cursos de extrema-Humanas.
Contra isto, havia panfletos, cartazes por toda a Cidade Universitária com mais detalhe para “a chapa do Rodas” do que para qual chapa concorrente havia os colado ali, camisetas, faixas ocupando dois pavimentos, jornaizinhos diários, um pessoal que chegou de ônibus para panfletar nas unidades do interior (curiosamente lembradas nessas épocas, mas não quando uma assembleia na principal unidade da capital decide “em nome da USP”, se lixando para a opinião dos campi do interior), fora a turma que interrompia aulas para “passar um recado” aos alunos, pedindo pelamordedeus que votassem em qualquer uma, menos na Reação. Uma estrutura tão exorbitante que fica difícil acreditar que tenha sido respeitado o teto mandatório de R$5 mil gastos em campanha. Isso sem falar em esquisitices, como urnas da FEA e da Poli “misteriosamente” com falta de cédulas (por que bem lá?), além de relatos no interior de pessoas “deixando” votos para mesários entregarem quando as urnas chegarem. Ainda assim, a chapa marcou um honrado segundo lugar.
A novilíngua e a revolução dos porcos (no mau sentido)
Mas também foi uma disputa desigual no campo ético. Além da campanha apelando a um medo primitivo e irracional, a chapa nadou contra a maré enfrentando um difícil paradoxo: como mostrar a mais pessoas que é possível mudar o DCE, se cada estudante que nunca precisou dessa entidade (em verdade, ela mais atrapalha os estudantes do que os ajuda) sente um calafrio na espinha só de ler tal sigla? A proposta da chapa também exibia uma retidão difícil de ser “vendida”: ao invés de impor suas opiniões goela abaixo dos seus possíveis eleitores (entendo que, se alguém vota na chapa, é por querer que a USP inteira se curve a seus interesses mesquinhos e passageiros), procurou tratar as questões fundamentais da USP (mormente a presença da PM no campus) através de plebiscitos consultando mais estudantes, para antes de tudo respeitar a opinião de todos os USPianos.
A USP, além de um Muro de Berlim que separa sobretudo a Cidade Universitária do restante da realidade, tem também uma novilíngua toda sua: todas as chapas diziam lutar pela “democratização” da Universidade, quando na prática (e mesmo na teoria, já na frase seguinte) propunham um modelo de assembleias e reuniões políticas feitas para exigirem tanto esforço que apenas alunos com carreira política em algum partido podem acompanhá-las. Para se ter uma ideia, vide os “resultados” de uma assembleia apregoados pelo jornalzinho do PCO como uma enorme vitória, onde se “deliberou” o seguinte:
– indicar a discussão de uma próxima paralisação às assembleias dos cursos;
– adesão ao ato convocado pelo Comitê Unificado contra a Repressão que ocorrerá no dia 22/03 às 17h em frente à Reitoria;
– contra o adiamento das eleições para o DCE-Livre;
– indicativo de assembleias de cursos entre os dias 09 a 14/04;
– ato-debate no dia 12/04, no prédio dos cursos de História e Geografia, em memória ao Prof. Aziz Ab’Saber e aos mortos pela Ditadura Militar, pela democratização da universidade, contra a militarização do campus e a repressão;
– próxima reunião do Comando Geral de Mobilização no dia 13/04 às 18h no prédio dos cursos de História e Geografia;
– próxima Assembleia Geral dos Estudantes da USP será realizada no dia 19/04 às 18h no prédio dos cursos de História e Geografia da FFLCH.
Traduzindo da novilíngua, “deliberaram” (adoram esse verbo) uma “paralisação às assembleias” (seja lá o que tal sintaxe queira dizer), aderir a um comitê, não adiar as eleições (dar outro golpe por medo, como o que já havia sido realizado em uma assembleia de mentirinha) e propor… duas assembleias, um ato e uma reunião. Ou seja, fizeram uma assembleia para “decidir” por quatro assembleias e por medidas simbólicas (visto que uma assembleia não decide as datas das eleições do DCE). É mais ou menos como “deliberar” que o Estado é laico propondo nova reunião no fim da próxima sessão de descarrego na pentecostal mais próxima.
A isso chamam “democracia”. Uma atitude típica de gente que não trepa. As propostas de uma chapa que pretendia que as pessoas fizessem algo mais útil com seu tempo livre (como, sei lá, sexo) foram chamadas de “ditadura”. Em entrevista ao Estadão, um aluno de uma das chapas concorrentes criticou a ideia de ouvir mais estudantes: para ele, seria dar voz a estudantes “desmobilizados”. O tal “movimento estudantil”, após ajudar na derrubada da ditadura e no impeachment de Collor, dá suas caras e cores fascistas, e agora divide os estudantes em castas: os que podem ter opinião e os que não podem.
A Reação também veio trazer algo mais do que verdadeira democracia. O companheiro anti-“desmobilizados” acima não é um caso único. Na própria invasão da reitoria no ano passado, até mesmo a assembleia convocada (à qual só compareceram os “mobilizados”) votou contra a invasão. Indignados, alunos “democráticos” (a maioria depois formou a chapa 27 de Outubro, com afiliados do PCO) esperaram a assembleia se esvaziar e, após a meia-noite, decidiram “revotar”, ganhando assim de levada o voto pela invasão. Ora, quem ficaria na USP até uma da manhã? Alguém que tem trabalho no dia seguinte, ou alguém que vai invadir a reitoria, não importa o que digam?
Nitidamente, se vê que o resultado “deliberativo” da assembleia já estava decidido antes de ela começar. Todas elas são apenas um teatrinho para dar ares de “decisão dos estudantes” a medidas autoritárias que acabam agredindo os estudantes com piquetes, greves forçadas e até a “comissão de segurança” da invasão da reitoria – ou seja, alguns leões de chácara de altura, peso, diâmetro e densidade próximas às de um diplodoco prontos a te espancar caso você invente de entrar na reitoria ou tirar fotos do que vir. A causalidade está completamente invertida. A Reação apareceu para trazer aos alunos “críticos da sociedade” a noção elementar de que os resultados vêm depois da votação.
Num ponto raríssimo em que Marx e Tocqueville concordam em algo, a política como teatro e farsa é o mecanismo de legitimação de um poder indesejável e nocivo ao governado. É o mecanismo que qualquer ditadura usa para se manter no poder – de Hitler a Saddam Hussein, de Stalin a Pinochet, todos convocaram eleições entre os seus para se manter no poder oprimindo à mão de ferro aqueles que governavam. O que falta para a USP se tornar uma ditadura feroz é apenas maior quantidade de sangue, porque um pouco já teve. Afinal, qual o medo de se convocar um plebiscito para saber a opinião de todos os estudantes da USP sobre a presença da PM, por exemplo? Apenas isso: saber que defendem uma bandeira ilegítima e que, afinal, já causou morte dentro do campus. Também é a isso que chamam “democratização”.
O que vem pela frente
Os números não mentem: ainda nem 20% da USP compareceu às urnas. Como a extrema-esquerda apenas floresce em cursos extremamente “mobilizados” (na verdade, os que mais se cegam da verdade, em uma real autonomia da realidade através de livros feitos para se ter menos noção de mundo, e não mais), é praticamente óbvio que, quanto mais pessoas votarem longe dos currais de votos manipulados, menos votos a velha extrema-esquerda terá. Por isso, o surgimento de uma chapa com risco de ganhar, mesmo sem estrutura com décadas de profissionalização por trás, causa tanto medo nos companheiros. É curioso que pessoas tão “democratizantes” e contrárias à “privatização” sintam horror à ideia de que uma maioria democrática pode não os querer no poder. E agora, o recado é claro: basta tempo para outros institutos ficarem sabendo das eleições para o DCE e a festinha do pseudo-proletariado acabou.
Mais do que isso, é bom entender que a Reação, muito mais do que uma chapa, é um movimento. E não é restrito à USP: chapas que, sem muito dinheiro e estrutura, arrancaram a dentadas o Muro de Berlim já ganharam o pleito na UFMG e na UnB, além de já terem sofrido fraudes na UFRGS parecidas com as que a Reconquista, que tinha membros e ideais parecidos com a Reação, sofrera em 2009.
A Reação é o saco cheio. É uma reação contra uma canalha mocoronga que está há 20 anos trocando de lugar no poder com o partido rival sem ter feito nada além de greves, piquetes e convocado assembleias. É um paradoxo ter de se organizar politicamente pelo direito de ter aulas em paz sem politicagem, por isso o movimento demorou tanto para aparecer. Mas, se é só assim que se consegue jogar o jogo, assim jogaremos.
A Reação modificou o movimento estudantil de cima abaixo. É quase inconcebível imaginar que haverá alguma eleição para o DCE nos moldes como elas eram antes de a Reação existir – mesmo que nenhum de seus atuais membros faça mais parte da USP. E que fique o recado para todas as universidades do país: mesmo sem muito esforço, basta dar aos estudantes o direito de voto e os partidos nanicos serão imediatamente lembrados de que, somados, não juntam 1% dos votos da população. E não é com esse elitismo que podem ser “a voz da democracia”.
-
Ludmilla
-
Luís
-
-
http://www.menestreis.campogeralcom.br André George
-
Carlos
-
Pedro
-
http://vilarnovo.wordpress.com Pablo Vilarnovo
-
Crotalus
-
-
http://www.colbertreport.com Gabriel Gabbardo
-
Bosco
-
Bosco
-
http://andreegg.opsblog.org André Egg
-
Luís
-
-
Luís