Tentativas de explicar o inexplicável

Se há algo a ser preservado da teoria econômica ortodoxa contemporânea é a simples e elegante ideia de que “incentivos funcionam”.

"As leis secretas da economia: Revisitando Roberto Campos e as leis do Kafka", de Gustavo H.B. Franco

“As leis secretas da economia: Revisitando Roberto Campos e as leis do Kafka”, de Gustavo H.B. Franco

Disse certa vez o russo-americano Simon Kuznets, Nobel de Economia em 1971, que “existem quatro tipos de países: subdesenvolvidos, desenvolvidos, Japão e Argentina.” Gustavo Franco provavelmente concordaria com essa afirmação, mas adicionaria o Brasil como uma categoria própria. Seu novo livro, As leis secretas da economia trata, em parte, das particularidades e bizarrices que fazem com que, entre o Oiapoque e o Chuí, algumas leis econômicas pareçam funcionar de forma distorcida ou mesmo invertida.

Para isso, como diz o título, o autor revisita dois históricos tecnocratas brasileiros: Roberto Campos e Alexandre Kafka. Campos dispensa apresentações; Alexandre Kafka nasceu em Praga. foi educado no Balliol College de Oxford (o mesmo onde estudou Adam Smith) e chegou ao Brasil com a família em 1940, após a invasão alemã na República Checa. Era primo de segundo grau de Franz Kafka, e algum traço genético talvez possa explicar a disposição de ambos para tentar entender e descrever as particularidades de grandes burocracias. Kafka, o Alexandre, representou o Brasil no FMI por 32 anos, tendo, portanto, um ângulo privilegiado e bastante tempo para refletir sobre os estranhos mecanismos que movem a economia brasileira.

No livro, Franco lista as dez “leis do Kafka” originais, de um texto de Campos e Kafka de 1961, e acrescenta outras 64, de formulação própria ou inspiradas em outros personagens: servidores públicos com quem conviveu nos seus anos de Brasília, políticos, industriais e outras personalidades históricas.

As leis são divididas em seis categorias: “O Mercado”, “Autoridades e política econômica”, “Reguladores e bancos”, “Decisões”, “Finanças públicas” e “Câmbio, preços públicos e globalização”. As da primeira, na minha opinião, são as mais fracas: ao mesmo tempo tentam fazer um elogio à ideia de mercados eficientes (nos quais todas as informações disponíveis estão refletidas em preços, e é impossível ganhar com especulação) e pintam os mercados financeiros como uma selva, onde interesses dos maiores predominam e os participantes são divididos entre “trouxas” e seus predadores. Não só, creio, falta uma lógica interna nessa visão (os grandes predadores, podendo manipular os mercados de acordo com seus interesses, afastam a possibilidade de informação perfeita e eficiência do sistema de preços), como ela é bastante estranha vindo de um autor que, em boa parte do seu tempo, dedica-se a tocar uma companhia de investimentos (a Rio Bravo).

O livro passa a funcionar melhor no segundo capítulo, cujas leis, em conjunto, formam uma espécie de manual de inspiração maquiavélica de como, na prática, se comportam banqueiros centrais e demais reguladores do mercado. Como Alexandre Kafka, Franco aproveitou seus longos anos dentro da burocracia para observar seu funcionamento e particularidades de forma metódica e inteligente. Para quem, como eu, passou algum tempo em um departamento econômico de banco gastando incontáveis horas tentando interpretar atas e demais comunicações do Comitê de Política Monetária (Copom), como se tais documentos fossem produto de um oráculo onisciente, é um grande alívio ouvir de um ex-presidente do Banco Central que (lei 17) “a Autoridade fala mesmo através de suas ações”, e que o que as cerca é deliberadamente opaco e, idealmente, com o mínimo de compromisso envolvido.

As leis da terceira categoria tratam da regulação bancária, a responsabilidade menos glamourosa (mas não menos importante) de um banco central. Aqui, destaco uma pérola, a lei 29: “Lei de Mauch, uma de várias, a Primeira Lei das Fusões Bancárias: Duas prostitutas não fazem uma donzela” – especialmente pertinente em tempos onde uma das principais ações na tentativa de salvar bancos problemáticos é juntar vários deles numa estrovenga “grande demais para quebrar”. Essa lição aprenderam, de forma dolorosa, os que subscreveram à oferta de ações do espanhol Bankia, fusão de sete “cajas” regionais problemáticas. Os papeis foram lançados a perto de €4 e hoje são negociados a menos de €0,20. Que fique na mente dos brasileiros para que, no futuro, não caiam no mesmo conto.

A quarta parte trata dos bastidores das leis, da burocracia e do ecossistema de Brasília, um teatro de absurdos onde de vez em quando trata-se do interesse público e a maior parte da energia é consumida na tentativa de preservar privilégios adquiridos e não “chacoalhar o barco”. Aqui o autor oscila entre não levar-se muito a sério e construir de si próprio uma figura de reformador que anda ausente da política, saindo-se melhor, claro, quando adota a primeira postura. Auto-elogio, mesmo disfarçado, raramente faz boa leitura.

Na quinta parte, o foco volta-se para finanças públicas e a arte de acomodar inúmeros interesses em um orçamento público limitado. Por fim, o sexto capítulo trata de câmbio (incluindo a já célebre Lei de Sauer-Setubal, pela qual a razão de troca de reais por dólares está sempre 30% mais apreciada do que deveria – lamento eterno de entidades como a FIESP e dos “desenvolvimentistas”), outras intervenções do governo em preços que, para um liberal com Franco, deveriam ser determinados pelo mercado e, por fim, globalização e seus paradoxos.

Por trás de todas as leis e suas explicações está a “verdadeira mensagem” do livro, como o autor faz questão de deixar claro na introdução:

… as bizarrices do Brasil são todas elas explicadas através do bom-senso e da boa teoria econômica, só é preciso compreender o contexto e os incentivos, sempre exóticos e incomuns, que provocam comportamentos surpreendentes e idiossincráticos, mas paradoxais apenas na aparência.

Gosto menos dessas tentativas, à la Freakonomics, de tentar encaixar todas as causas e consequências dentro da teoria econômica do que quando o livro conta boas histórias e anedotas, mas concordo com a noção de que se há algo a ser preservado da teoria econômica ortodoxa contemporânea é a simples e elegante ideia de que “incentivos funcionam”. O livro pode ser resumido a essas duas palavras, que provavelmente seriam as minhas escolhidas (e, acredito, as de muitos economistas liberais) em um exercício análogo ao proposto certa vez ao físico Richard Feynman, perguntado qual seria sua escolha de uma frase que contivesse a maior quantidade de informação científica em poucas palavras (a escolha dele foi “todas as coisas são feitas de átomos”).

As leis secretas da economia acaba sendo um bom compilado da opinião ortodoxa/liberal para vários dos grandes problemas econômicos da atualidade e uma valioso documento histórico de um autor que concentrou grande poder por muito tempo. O estilo poderia ser menos professoral e mais descontraído, mas não chega a ser pedante ou irritante – talvez passaria a ser se o livro fosse mais longo (tem pouco mais de duzentas páginas). Uma pequena e interessante peça que ajuda na compreensão de problemas de enorme complexidade.

::: As leis secretas da economia :::
::: Gustavo H. B. Franco :::
::: Zahar, 2012, 220 páginas :::
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