Os ensaios de Rónai revelam novas facetas interpretativas que merecem uma cuidadosa reflexão
Na obra Lector in Fabula, Umberto Eco menciona que cada livro possui um Leitor Ideal, uma figura idealizada que seria o destinatário final das palavras concebidas pelo autor. Este Leitor Ideal determina não só a formatação da obra, como ela também acaba sendo inconscientemente dirigida de modo a construí-lo. Quando escreveu a sequência de romances, novelas e contos que formariam o vasto painel a que chamou de A Comédia Humana, Honoré de Balzac não imaginava que o seu Leitor Ideal seria um húngaro nacionalizado brasileiro, que nasceria 57 anos depois da sua morte. Se tivesse conhecimento, é provável que Balzac achasse extremamente divertida a ideia de que o seu retrato da sociedade francesa da época acabaria se tornando uma obra de interesse universal, extrapolando as fronteiras da França para se tornar algo capaz de atrair vários tipos de leitores.
Paulo Rónai (1907-1992) dedicou sua vida ao estudo de Balzac. Além de ter escrito uma biografia sobre ele, também realizou a sua tese de doutoramento em 1930 analisando os romances da mocidade do autor francês. Por este motivo, quando chegou o momento de lançar a versão completa de A Comédia Humana, o responsável pela Editora Globo, Maurício Rosenblatt, chamou Rónai para organizar, classificar e fiscalizar as traduções entregues para publicação. Era o trabalho de uma vida, de uma dedicação quase absoluta, e o crítico entregou-se a ele com abnegação. Lançada em 17 volumes entre os anos de 1946 e 1955 e, posteriormente, relançada a partir de 1989, A Comédia Humana acabou se tornando um dos marcos do mercado editorial brasileiro. Apesar do gigantismo da tarefa, Rónai sempre a considerou imperfeita, trabalhando no burilamento das traduções e tentando se aproximar ao máximo da intenção de Balzac mesmo nos períodos em que a obra estava esgotada, fato que lhe deixava profundamente entristecido. Sobre este aspecto, o livro traz um ensaio (“A Comédia Humana no Brasil: a história de uma edição”), contando os problemas que cercaram o trabalho hercúleo de lançar, editar e corrigir livro de natureza tão vasta e complexa.
Em 2012, no terceiro relançamento de A Comédia Humana nos moldes do idealizado por Rónai, a Biblioteca Azul lançou junto o livro Balzac e a Comédia Humana, reunindo ensaios esparsos feitos pelo organizador da edição, onde ele destila todo o seu conhecimento. Apaixonado pela obra do escritor realista, Rónai deixa transparecer toda a sua idolatria, listando as críticas favoráveis e as contrárias feitas sobre o livro. Em alguns momentos, como se Balzac estivesse em julgamento, o crítico abandona a posição de neutralidade e tece longas defesas sobre o estilo e as intenções do autor, investindo contra as opiniões que considera injustas. Em determinados instantes, Rónai pretende ler os pensamentos e desejos do outro, tentando entender o autor em conjunto com a obra. A crítica brasileira atual se caracteriza por uma tentativa (falha) de buscar a isonomia e o distanciamento teórico, como se rotular fosse mais cômodo do que refletir a respeito. Por este motivo, a defesa reiterada de Balzac feita por Rónai e o seu desejo de interpretar a obra em conjunto com a vida do autor soam um pouco defasadas. No entanto, isto não prejudica a fruição da leitura e a elegância da prosa, que acabam envolvendo o leitor e deixando-o interessado em igual medida pelo escritor e pelo seu trabalho.
Como todo homem apaixonado por seu objeto de estudo, Rónai não se limita a contar aspectos teóricos ou críticos de A Comédia Humana. Não raro ele entra no campo da análise psicológica das personagens e a sua ligação com a vida de Balzac. Por este motivo, ao tratar de Memórias de duas jovens esposas, Paulo Rónai faz uma longa digressão sobre os motivos pelos quais Balzac teria ampliado o originalmente planejado Memórias de uma jovem esposa para duas, vendo relações entre as mulheres que foram importantes na sua vida e ingressando com ousadia no campo da suposição, aventando que as duas esposas tinham maneiras diferentes de olhar o casamento e que uma narrativa epistolar só teria resultado acaso houvesse pergunta e resposta das cartas. Analisando em conjunto cartas, depoimentos e biografias de Balzac, e suprindo os espaços vazios com um pouco de imaginação, o crítico acaba tecendo hipóteses impossíveis de serem comprovadas sobre as motivações estilísticas do outro. É uma forma de crítica literária arriscada, pois demanda uma interpretação pessoal do próprio crítico sobre o objeto analisado, mas Rónai, alicerçado nos inúmeros anos em que estudou em detalhes A Comédia Humana e todos os livros feitos sobre ela, sente-se confortável para realizá-la.
Nem sempre este viés crítico é determinante para a leitura. Ao afirmar que a obra de Balzac se centra sobre o “dilema do mandarim”, Rónai dedica-se com afinco a provar a sua teoria, buscando elementos que a confortem. Para quem não sabe, o “dilema do mandarim” atravessa a humanidade desde tempos imemoriais e pode ser sintetizado da seguinte forma: se você tivesse o poder de matar um mandarim na China sem que ninguém soubesse, herdando toda a sua fortuna, você mataria ou não? Seria o crime perfeito, mas a consciência seria a única a ser torturada. Com base nesta ideia, Rónai analisa os romances, novelas e contos constantes de A Comédia Humana, tentando ver a aplicação do “dilema do mandarim”. É uma interpretação interessante e inusitada da obra de Balzac, em especial porque o crítico consegue provar diferentes maneiras com que esta dúvida surge dentro da obra, em um constante confronto entre a consciência da personagem e o seu desejo de galgar as esferas sociais a qualquer custo. Falando das leituras que influenciaram Balzac e do cinismo do próprio escritor francês ao abordar a sociedade francesa em que vivia, Rónai divide as personagens de A Comédia Humana entre aquelas que conseguem sobreviver moralmente ao “dilema do mandarim” e aquelas para quem tal dilema é insuportável.
Para quem desconhece por completo a obra de Balzac, não seria de bom alvitre iniciar pela leitura dos ensaios contidos neste livro. Não se pode olvidar que os ensaios são antigos prefácios e comentários, reunidos em uma única edição destacada do conjunto da obra na qual originalmente figuravam. Eles são mais complementares à leitura do que servem como uma boa introdução. No afã de provar as suas teorias, e considerando-se a sua extremada paixão pela obra de Balzac, Rónai alonga-se nas descrições dos livros e costuma resumi-los do início até o fim, tirando o prazer de um leitor eventual de se surpreender com a história. Entretanto, para aqueles que já estão familiarizados com Balzac, os ensaios revelam novas facetas interpretativas que merecem uma cuidadosa reflexão, seja para concordar ou para discordar do seu autor.
É impossível não se embalar pela escritura de Paulo Rónai. Alterando deliciosos trechos em que aborda a vida e a época de Balzac com a descrição da fortuna crítica que analisou a obra deste autor paradigmático do Realismo, o crítico brasileiro relembra detalhes das suas andanças pela França atrás dos cenários narrados pelo seu autor favorito. Tão intensa é a sua relação psicológica com Balzac que as descrições de trechos da vida do escritor adquirem o caráter de confidências indiscretas feitas por um velho amigo. Além disso, trata da forma com que este construiu os livros, vendo A Comédia Humana como uma obra mecânica em constante movimento, um livro que transmite vida e que está repleto de detalhes que uma existência inteira de análise não cuidou de exaurir. No último ensaio, o desabafo de Paulo Rónai afirma que, terminada a gloriosa tarefa de editar 17 volumes e cuidar da tradução de mais de 12.000 páginas, ele pode abandonar o encargo que lhe foi confiado e retornar à leitura de Balzac sem maiores obrigações, nas suas horas vagas, pelo simples prazer da leitura. Para Rónai, mais do que um livro, A Comédia Humana é a história da sua própria vida de leitor.
::: Balzac e a Comédia Humana :::
::: Paulo Rónai :::
::: Biblioteca Azul, 2012, 256 páginas :::
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Gustavo Melo Czekster
Autor dos livros de contos Não há amanhã (2017) e O homem despedaçado (2011). Doutorando em Letras pela PUCRS.
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