O baiano e o alemão
Mito João Gilberto ganha “biografia” à altura de sua genialidade e excentricidades.
Um alemão meio doido acha que João Gilberto vai recebê-lo em sua casa e tocar os clássicos da Bossa Nova num violão de família que o ingênuo gringo traz de sua terra natal. Essa história louca é o mote inicial do maravilhoso livro de Marc Fischer, um berlinense que depois de ouvir João Gilberto na casa de um amigo japonês na Ásia não conseguiu mais esquecer o baiano de Juazeiro. À primeira vista é uma história banal; não daria um bom livro. Pois é, pelo jeito a primeira vista engana. O livro do alemão Marc Fischer, Ho-ba-la-lá: À procura de João Gilberto, é um marco da bibliografia musical brasileira. Um livro ao mesmo tempo leve e denso, fundamental para dimensionar não apenas a genialidade, mas também as ambiguidades do mito João Gilberto.
A obra de Fischer é escrita num tom coloquial, quase informal. É extremamente leve, agradável de ler. É para ser lido rapidamente e em qualquer lugar. Ao mesmo tempo é um livro complexo, capaz de abordar um biografado igualmente complexo. Fischer tem o mérito também de romper paradigmas reinantes na maioria das biografia lançadas ultimamente.
Sem saber uma palavra de português e nem exatamente onde e como procurar, Fischer veio ao Brasil tentar conhecer o mito. Contratou uma tradutora/ajudante, a quem chama ironicamente de “Watson”, e começou sua busca por João pela Zona Sul carioca. Como era de se esperar, encontrar uma lenda urbana é praticamente impossível. Fischer já estava preparado para isso. Já tinha lido muito sobre João. Sabia que ele é meio esquisitão, que vive trancado no seu apartamento, que praticamente nunca sai de casa (seria um vampiro? – ele se pergunta), que conversa longamente pelo telefone com pessoas comuns, que passa horas tocando violão para as paredes obsessivamente, que é um grande entusiasta de gatos, que não dá entrevista, que não recebe ninguém, que é perfeccionista, que come sempre o mesmo prato etc. Mesmo consciente destas dificuldades, Fischer é um alemão “que não desiste nunca”.
E vem novamente a pergunta: isso dá um bom livro? Incrivelmente, através da escrita deste genial alemão, a resposta é um sonoro sim! Mais do que o título, que faz referência à música que primeiro tocou na vitrola de Fischer, o subtítulo dá conta do que é o livro: à procura de João Gilberto. Como apenas tem vaga ideia de como chegar ao ídolo, se é que isso de fato seria possível, Fischer resolve comer pelas beiras. Começou então a entrevistar pessoas que conviveram com o gênio baiano: João Donato, Roberto Menescal, Marcos Valle, Joyce, Miúcha e vários outros. Fischer entrevista até o garçom do restaurante delivery que atendia telefonemas de João Gilberto todas as noites, invariavelmente com o mesmo pedido. Não obstante a monotonia gastronômica, João trocava longos papos com o garçom chamado “Garrincha”. Não é de forma gratuita a obsessão de Fischer com o garçom de João. O pai da Bossa Nova conversa longa e pausadamente com qualquer um com quem simpatize. Sempre foi assim, como notam seus amigos da época da Bossa Nova. João era capaz de tirar um amigo de uma animada rodinha de festa para mostrar novas resoluções e timbres do seu violão num quarto anexo, imerso em seu mundo perfeccionista. Um a um, os entrevistados contam um pouco do misto de gênio e louco baiano. Um traumatizado Roberto Menescal afirma que João tem capacidade de mudar as pessoas “para pior”, através de um amaldiçoado poder de sedução. A cantora Joyce mostra-se receosa: “É preciso tomar cuidado para que ele não entre na gente e tome posse, feito uma jiboia”, disse.
A única crítica que consigo fazer à obra de Fischer é que ele poderia ter usado mais a entrevista de Miúcha, que foi casada com João. De qualquer forma, todos os entrevistados ilustram as excentricidades de João Gilberto. Todos reconhecem sua genialidade, mas também admitem não poder conviver muito próximo dele. A cada personagem, uma faceta do mito é ilustrada, de forma que esta personagem complexa vai surgindo aos poucos. O auge é a entrevista com Claudia Faissol, socialite carioca com quem João Gilberto teve uma filha depois dos 70 anos.
Para além de um livro de fofocas sobre alguém claramente atormentado psicologicamente, Fischer passa além dos clichês das biografias tradicionais, dos quais o meio musical está pleno. Melhor ainda, Fischer consegue a maestria de escrever tanto para alemães quanto para brasileiros. Para fãs e odiadores de João.
De fato, o livro tem um quê de mágico. Sua procura tem o quê de busca do Santo Graal, como se João Gilberto fosse uma lenda, surreal, inexistente. Fischer visitou até o banheiro em Diamantina (MG) no qual João Gilberto inventou a “batida” da Bossa Nova, numa experiência mística que só lendo para entender o que este resenhista que vos escreve não é capaz de formular em frases. Aliás, depois da narrativa de Fischer é inadmissível que a prefeitura de Diamantina não transforme aquela ex-casa da irmã de João em museu! Ironicamente, nesta casa hoje funciona uma imobiliária: curioso é que uma imobiliária não saiba o valor histórico, cultural e simbólico (e, para Fischer, místico) deste imóvel.
Repito, não é um livro fácil, embora seja fácil de ler. Ao longo da obra nos tornamos um pouco João Gilberto, entendemos suas loucuras, passamos a compreender que sua hibernação talvez seja o preço de sua genialidade. Que talvez valha a pena “ser” João. Sentimos seus sussurros no cangote. Às vezes sussurramos como ele. Para além da experiência mística, o livro nos faz compreender o legado de João na música brasileira. Faz-nos entender sua formação, suas origens, suas rupturas, suas noias. Sentimo-nos um pouco refém do próprio João Gilberto… e gostamos. Este resenhista sentiu isso: por volta das três da manhã de uma noite de verão de 2012/2013, li quase todo o livro, relativamente curto (184 páginas), tomado por uma ansiedade e insanidade que talvez só o próprio João tenha. A maestria de Fischer foi conseguir, ao mesmo tempo, reconstruir João de forma leve e densa ao mesmo tempo. Se fosse só leve, não daria conta de sua personagem. Se fosse só densa, não suportaríamos sua obsessão genial.
Outro grande legado da obra de Fischer é reposicionar João Gilberto na escrita da música brasileira. Até então, o potencial revolucionário de João vinha sendo constantemente dilapidado na bibliografia musical. Desde a Bossa Nova, toda uma geração de artistas se esmerou em relativizar o legado de João, a começar por Ronaldo Bôscoli, misto de compositor e ideólogo, que, desde o advento da Bossa Nova, quis enfatizá-la como um movimento grupal. Esta tese foi avalizada, atualizada e amplificada no maior clássico sobre o gênero, o livro Chega de saudade, de Ruy Castro, publicado em 1990. Ali, Castro compra a tese de Bôscoli de que a Bossa Nova não era “simplesmente” João Gilberto (e quem sabe Vinícius de Moraes e Tom Jobim – e no máximo Newton Mendonça também), mas toda uma geração de artistas como Roberto Menescal, Carlos Lyra, Silvia Telles, Johnny Alf, Ronaldo Bôscoli, Nara Leão, Claudete Soares, Billy Blanco, Luis Carlos Vinhas, Chico Fim de Noite, Sergio Ricardo, Alaíde Costa, Oscar Castro Nevs, Luiz Eça, Sergio Mendes etc. Parte destes artistas se congregavam em noitadas no famoso Beco das Garrafas, na Copacabana de fins dos anos 50, onde havia três boates nas quais se reuniam os entusiastas do jazz no Brasil. Outra parte se reunia no apartamento de Nara Leão. No entanto, não custa lembrar que João Gilberto nunca esteve no Beco e só tímida e muito rapidamente na casa de Nara, como reconhece o próprio Ruy Castro. Chegamos então a um paradoxo iluminado indiretamente por Fischer: como pode o deus daquela geração não estar nos lugares onde era cultuado?
A escrita da Bossa Nova como um movimento grupal serviu para unificar toda uma geração que estava meio perdida até antes do livro de Ruy Castro. Lastreou um passado comum de artistas que na época da publicação de Chega de saudade estava sem fazer nada de significativo e os arrastou para a louvação de um passado “nobre” da música brasileira, tão elogiado pelo fã escritor. Desde então, esta tem sido a versão hegemônica sobre a Bossa Nova, seja no meio jornalístico ou acadêmico. Pouquíssimos são os que conseguem ir além dela.
Paulo César de Araújo foi um deles, e pagou o preço da ousadia. O historiador tentou resgatar a influência decisiva de João Gilberto na carreira de Roberto Carlos e no seu modo de cantar. Mostrou que João vem sendo tolhido pela escrita da Bossa Nova, que priorizou seu “legado Zona Sul carioca”, apagando as ressonâncias populares de sua obra. Segundo Paulo Cesar, não apenas João foi tolhido, mas todos aqueles que não se adequaram à história privada da Bossa Nova. Roberto Carlos foi um exemplo.
Antes da fama, quando cantava influenciado pelo baiano, Roberto foi “despejado” da casa de Nara Leão quando lá tentou cantar, acusado pelos bossa-novistas de ser a versão “suburbana” de João Gilberto. É o que mostra Paulo Cesar de Araújo em seu censurado Roberto Carlos em detalhes (disponível em cópias piratas na internet), recolocando João num papel preponderante e diametralmente oposto ao que se entronizou na bibliografia musical brasileira. Não obstante, a obra de Paulo César foi acusada levianamente, até pelo próprio Ruy Castro, de ser “uma obra de fã” de Roberto Carlos. Logo Ruy Castro, que admite na introdução de Chega de saudade, ser fã do gênero. Então é disso que se trata? Uma briga de fãs? Um fã de Roberto Carlos (que buscou reposicionar e elevar João Gilberto) versus um fã da turma da Bossa Nova?
Bem, depois de Ho-ba-la-lá, não tem mais conversa. Fischer recoloca o baiano no seu devido lugar. João não é qualquer um. João não é “mais um”. Ele é “o cara” da Bossa. É a partir dele que toda geração bossa-novista se constituiu, assim como a seguinte, a da MPB. Sem ele, Tom Jobim não seria Tom Jobim. Basta ouvir os arranjos do “maestro soberano” antes do primeiro disco de João. Nenhum deles chega perto do que se tornaria a Bossa Nova, apesar de muitos analistas quererem ver linhas evolutivas na obra de Tom, e relativizar o poder simbólico da ruptura gilbertiana. Talvez o único artista que, intempestiva e enfaticamente, desde sempre, coloca João Gilberto no seu devido lugar seja Caetano Veloso. Através de Fischer compreende-se melhor a ênfase de Veloso e por que João é seu único mito. João sintetiza e antecede aquilo que a Tropicália levará como bandeira: a junção do refinado e do popular numa síntese perfeita.
É uma pena que hoje em dia a juventude associe a Bossa Nova, e por consequência também João Gilberto, às novelas de Manoel Carlos que se passam no Leblon. Nada mais contrário ao seu legado revolucionário. Nada menos João. O livro de Marc Fischer nos faz entender que sua batida não era só a batida de Ipanema ou Copacabana, mas de todo um Brasil popular que era relido pelo refinamento de um brasileiro único, capaz de sintetizar toda uma nação em sua loucura e genialidade.
A duplicidade loucura/genialidade atinge todos aqueles tocados por João através da maestria da prosa de Fischer, resgatando o poder de convulsão da Bossa Nova original, que se perdeu em nosso tempo e chega aos dias de hoje simplesmente como “música de elevador” ou “música de sala de espera”. É uma pena. Pois Fischer retira João Gilberto deste limbo. Indo além de larga bibliografia, o autor engrandece seu biografado com justiça e sutileza e, o que é mais espetacular, nos delega sua compreensão. Sentimo-nos loucos e gênios com e como João.
Também Marc Fischer parece ter padecido da mesma ambiguidade loucura/genialidade. Depois da leitura de sua obra mais genial, talvez um ato de loucura do autor alemão faça mais sentido. Uma semana antes do lançamento do livro na Alemanha, Fischer se suicidou.
::: Ho-ba-la-lá: À procura de João Gilberto :::
::: Marc Fischer (trad. Sergio Tellaroli) :::
::: Companhia das Letras, 2012, 184 páginas :::
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