Fazer ciência sobre a Atlântida parece ser menos perigoso que adentrar na geografia urbana das cidades
Na mesma semana em que a funkeira e dançarina Valesca Popozuda chegou às manchetes dos jornais por outra razão que não seu volume glúteo, um outro fato repercutiu fartamente internet afora (ou seria adentro?) a respeito das musicalidades que vêm das periferias brasileiras. Trata-se da aparição do líder do pioneiro grupo de rap Racionais MC’s, Mano Brown, em um clipe de um gênero aparentemente divergente daquele a que estão acostumados os fãs de suas rimas. Enquanto Brown aparece sem dizer uma só palavra no funk composto pelo MC Pablo do Capão, “Tanto faz, tanto fez“, e Valesca torna-se silenciosamente tema de estudo antropológico na Universidade Federal Fluminense, o estrondo se faz, como sempre acontece quando as fronteiras do “admissível” são ultrapassadas, fidelidades corrompidas e papeis são transgredidos. A amplificação do estrondo não poderia ser maior tendo a periferia como cenário e, como som de fundo, o funk e seu batidão.
Como é sabido, no movimento histórico o rap foi quem sucedeu ao funk, e não vice-versa. Aportado no Brasil em meados da década de 80, o rap custou bastante a mixar-se aos ritmos brasileiros. Ainda hoje, a grande maioria dos grupos e cantores prefere manter a estética e motivos daqueles precursores do gênero, da vertente norte-americana. O gangsta rap foi, desde sempre, um forte veículo de denúncia social e, de longe, o modelo preferencial daqueles que se estabeleceram por aqui. Entre estes, poucos grupos, como os Racionais MC’s, incorporaram tão fortemente o modelo que teve, nos EUA, o Public Enemy como principal expositor. O registro desse momento no Brasil chama-se Sobrevivendo no Inferno, um disco que vendeu mais de um milhão de cópias sem que, à época, uma linha sequer o abordasse na mídia. Hoje, é impossível não reconhecer que se trata de um trabalho com lugar garantido na história da música brasileira. Talvez ainda mais radical, no sentido botânico da palavra, possa encontrar-se apenas o grupo Facção Central, que desde os primórdios do rap dividiu com os Racionais a preferência dos fãs do rap paulista, ou seja, do gênero por excelência.
Momento sempre marcante das apresentações do quarteto da zona sul paulista, Brown nunca furtou-se a discursar diretamente para o público, prolongando ainda mais as noites de rap em pregações prolixas e multiversas. Naquilo que a psicanalista Maria Rita Kehl definiu como a “frátria órfã“, a identificação do público com o discurso não poderia assumir, sob a mesma ótica, outra forma que a de uma relação parental. Daí a reedição da orfandade que se verifica largamente, agora, entre os fãs de rap, após a divulgação do famigerado clipe funkeiro.
Mas será que o rap nacional chegou ao fim, desta vez para valer e justamente nas mãos do gênero coirmão, e através de um de seus principais ícones?
É muito provável que não, porque muito antes da aparição de Brown no clipe e do apogeu de vendas e popularidade do funk carioca, alguns compositores extravasaram os próprios limites do gênero e ajudaram a desfazer o arco da sobrancelha da expressão taciturna e revoltada do rapper convencional. Não custa lembrar especialmente de Rappin Hood e Sabotage, cuja morte completa dez anos em 2013. Ambos flertaram com o samba e com a MPB em registros que ainda hoje fogem aos formatos standard do gênero. Mais recentemente, o rapper Criolo transfigurou a cena ganhando prêmios e flertando com muitos estilos musicais além do próprio samba, como o afro beat, o dub, o reggae e até mesmo com os calientes boleros.
Não é no campo da forma que, entretanto, a ruptura se dá, mas principalmente na discrepância que se estabelece entre um estilo musical recheado por muito discurso e a realidade como ela é. Se a estampa de Mano Brown não poderia ser mais polêmica, talvez lhe faltasse cruzar o abismo entre o “funk alienado” e o “rap engajado”, a fim de descolar-se pelo menos um pouco da imagem de herói da periferia e transparecer com suas predileções reais, doa isso a quem doer, pois até mesmo um ícone pode ter seu gosto pessoal sem precisar dar explicações a ninguém. A repercussão do caso, entretanto, parece não conduzir a essa interpretação. Para os fãs do rap engajado, Brown não poderia ter escolhido pior maneira de reaver sua simpatia pelo funk, o que é interpretado inclusive como “alta traição”. A dor, pelo que se vê, vem da percepção de que não foi o mercado ou a mídia que dobrou seus joelhos, mas a mensagem da futilidade e do machismo, ao qual aderiu por vontade própria, imagina-se que por poder suportar as críticas que nos últimos dias o miraram em cheio. Pelo jeito, para os fãs de rap não se trata de tanto faz, tanto fez…
Sensação semelhante deve ter percorrido o corpo da estudante Mariana Gomes, que precisou encarar a cara feia de muita gente e críticas enfezadas ao seu projeto de pesquisa, intitulado “My pussy é poder – A representação feminina através do funk no Rio de Janeiro: identidade, feminismo e indústria cultural” (pdf). No caso dela, só mesmo o preconceito pode explicar a dificuldade em aceitar-se como objeto de investigação um fenômeno de massas como a representação de gênero, mesmo que através da expressividade das conhecidas mulheres-fruta e congêneres. Ou outro tipo de purismo sem razão de ser, haja vista que o funk e a cultura periférica já se encontram presentes na antropologia recente desde pelo menos a década de 90, tendo como marcos principais os trabalhos de Spensy Pimentel e Hermano Vianna. É duro crer que, em pleno 2013, fazer ciência sobre a Atlântida perdida possa ser menos perigoso e mais recomendável que adentrar um pouco mais na geografia urbana das cidades brasileiras e seu ethos. Viva-se com isso.
Talvez aqueles que desprezem o rap como forma musical não saibam, mas há purismo no rap também, e muito, como em qualquer outro estilo musical. Acontece que o rap, pelo menos o feito em terras brasileiras, é um tipo de expressão que extrapola um pouco o limite da criação musical, funcionando como um tipo de identidade coletiva extravasada e perfilada ideologicamente, no qual há valores importantes que são compartilhados pelos fãs. Tocar nesses valores, portanto, é algo que só pode ser entendido como uma espécie de profanação, principalmente porque boa parte do seu discurso denuncia não só a violência dos centros urbanos, mas os valores subjacentes a ela, como o consumismo e o machismo, por exemplo. A leitura do funk, por outro lado, é antagônica a do rap. Ela substitui valores morais por coisas e bens materiais e vale-se da ostentação econômica como forma de afirmação de identidades pessoais, em plena oposição à pregação da humildade e da “conduta”, constantes no rap.
Uma análise mais economicista diria que o rap é consequência de uma geração sem grandes perspectivas, marcada pelo marasmo econômico que dominou os anos oitenta enquanto que o funk diria mais respeito a uma trilha sonora de uma nova geração crescida sob a influência da expansão do consumo na era pós plano-real. O que de pior pode acontecer ao rap brasileiro não é uma crise de criatividade, é seu discurso tornar-se desnecessário e ser substituído por coisa nenhuma, ou pouco mais que isso. Há mais ou menos dez anos os Racionais MC’s anunciam o lançamento de um novo CD, enquanto seus integrantes dedicam-se individualmente a outros projetos. Nesse meio tempo, muita coisa surgiu e desapareceu no rap e no funk, assim como na cena musical em geral. É desse caldo de cultura que surgiram coisas complexas como as letras soletradas, por exemplo, por uma Valesca Popozuda. O espantoso mesmo é verificar que há gente que, diante disso, ainda acha que não vale à pena estudar os significados que há numa coisa dessas e em suas implicações humanas e culturais. É de considerar a hipótese de que os assuntos brasileiros despertem pouco interesse diante das emergências de Atlântida ou outros lugares e épocas, sempre mais sedutoras que as tramas e contratempos que se dão nesta terra brasilis.
Lúcio Carvalho
Editor da revista digital Inclusive. Lançou em 2015 os livros Inclusão em pauta e A aposta (contos).
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