Atualidade

Morte às enquetes online, por favor

por Carlos Orsi (23/04/2013)

Elas mobilizam torcidas para produzir um resultado que, depois, não pode ser usado por ninguém

Quando comecei a trabalhar em jornal, vinte anos atrás (vinte anos mesmo: a assinatura na carteira de trabalho é de 1993, com um salário de “cincoenta mil, cento e treze cruzeiros reais e cincoenta e seis centavos”, o que devia ser o piso de jornalista da época), tínhamos um editor que valorizava muito a interação com o público, que queria tirar o jornalismo dos gabinetes e levá-lo para o povo, para as ruas.

Uma das estratégias para isso era um negócio chamado “Fala Aí”. Volta e meia algum repórter era pautado para “fazer um Fala Aí sobre…”, enfim, alguma coisa. Podia ser o aborto, o trânsito, o preço do tomate (meninos, eu vi: a hiperinflação). O procedimento do Fala Aí era simples: o jornalista, acompanhado de um fotógrafo, dirigia-se a uma via movimentada e começava a pedir a opinião de alguns transeuntes — escolhidos ao acaso, ou por algum critério estético (o fotógrafo, afinal, estava ali) que opinasse sobre o tema.

Tratava-se de uma iniciativa bem intencionada, punha a cara de “gente comum” no jornal, escapando da velha mesmice prefeito-vereador-policial-empresário, mas — e isso já me incomodava, na época — era, ainda que inadvertidamente, desonesto. Porque a justificativa para a publicação do Fala Aí era a de apresentar a voz “do povo”, “das ruas”. E ele, obviamente, não era nada disso: era apenas a voz das meninas bonitas que o repórter (quase sempre) achava por bem abordar.

Avançando a fita, e chegamos à internet. Ao maravilhoso mundo da interatividade. Eu ainda me lembro de quando a maioria dos comentários que recebíamos no Estadão, lá por volta de 2000, 2001, era de reclamações de erros de português ou observações, algumas pertinentes, outras apenas pedantes, sobre o conteúdo de algumas matérias — por exemplo, o exato significado técnico da expressão “armas leves”, usado num relatório da ONU.

Naquela época, eu respondia a muitos desses comentários com longos e-mails, debatendo coisas que iam das regras do uso da crase à forma de tratamento correta para mencionar o dalai-lama. Isso, claro, antes das seções de comentários dos sites serem esmagadas por bate-bocas grosseiros e, no geral, tornarem-se fóruns públicos de calhordice do pior tipo.

Mais ou menos nesse período de transição entre o comentário gramático-enciclopédico e o escroto-rasteiro, surgiram as enquetes online.

Do ponto de vista mercadológico, a enquete é como o boi do provérbio, do qual só se perde o berro: é fácil de criar; gera tráfego (as pessoas entram no site, olham os anúncios, para clicar na opção desejada); gera mais conteúdo fácil e barato — gráficos de resultados, repercussões, matérias explicando por que enquetes não têm valor — que, por sua vez, geram mais tráfego. A enquete online é a coisa mais próxima já criada de um meio de extrair energia do vácuo ou, mais importante para os mantenedores de sites jornalísticos, audiência do nada.

O problema é que as enquetes têm, e elevado à enésima potência, o mesmo vício do velho Fala Aí: são desonestas. Não revelam o que supostamente deveriam revelar. Se o Fala Aí tinha, pelo menos, o mérito (provinciano, mas ainda assim um mérito) de pôr no jornal a cara e a opinião de pessoas que normalmente não teriam razão para aparecer na mídia, a enquete nem isso faz. O problema fundamental da enquete é, claro, o de amostra: em termos estatísticos, uma pesquisa, para poder embasar inferências válidas sobre a população em geral, tem de ouvir uma amostra representativa dessa população. E representativa, aqui, não quer dizer necessariamente grande: quer dizer pessoas escolhidas ao acaso ou, falhando isso, selecionadas de modo a refletir, de modo proporcional, os vários extratos relevantes da população — sejam eles de faixa etária, nível educacional, etnia, etc.

No caso da enquete online, vota, primeiro, quem está motivado a votar, quem já tem uma opinião forte sobre o assunto e sente uma necessidade imperiosa de expressá-la; segundo, quem é aporrinhado por amigos ou colegas da primeira categoria. Por exemplo, uma enquete sobre qual o melhor presidente da história do Brasil provavelmente seria tão inundada por votos de “petralhas” exaltados e “tucanalhas” inflexíveis que a opinião dos poucos cidadãos independentes que se dessem ao trabalho de participar acabaria tão diluída na enxurrada quanto fígado de pato num preparado homeopático.

No fim, uma enquete online revela não a opinião prevalente na sociedade, mas a opinião de quem tem a maior torcida com (a) acesso à internet e (b) forte motivação e (c) tempo de ir lá clicar. Isso, abstraindo-se fraudes mais elaboradas, como a criação de robôs de software que enviam votos de tempos em tempos. O resultado disso é que a enquete online não produz informação nenhuma. Nada. Neca. Neres de pitibiriba. O resultado da enquete é apenas o resultado da enquete: um objeto que, dependendo do tema, foi criado com muito som e fúria, mas que é totalmente desprovido de significado.

O ponto nevrálgico é: enquetes online são atos brutos de desonestidade intelectual. Não medem o que fingem estar medindo. Mobilizam torcidas para produzir um resultado que, depois, não pode ser usado por ninguém que pretenda manter um pingo de integridade no debate, seja qual for a questão em jogo. São, em resumo, convites ao rebaixamento da discussão.

Os sites de notícias que as realizam tentam se esquivar dessa implicação com a ressalva de que as enquetes “não têm valor científico”, o que é uma ressalva meio marota, já que sugere que elas podem ter algum outro tipo de “valor”. Certamente têm valor econômico (para os sites que ganham tráfego), esportivo (para as torcidas organizadas que se formam) ou de entretenimento (para quem assiste às mobilizações). Mas todos esses outros valores são predicados no interesse público que geram, interesse que, por sua vez, para ser legítimo depende do “valor científico” que elas admitidamente que não têm.

Vamos lá, gente. Há de haver outras formas de gerar tráfego sem gastar muito. Pôster de mulher pelada. LOL Cats. Mas, por favor, parem de poluir o debate público com empulhação intelectual.

Carlos Orsi

Jornalista e escritor, com mais de dez livros publicados. Mantém o blog carlosorsi.blogspot.com.

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