Resenha de "Pulso", de Julian Barnes
A literatura conserva os traços de todas as culturas. No Brasil, temos diferentes tradições que as da Europa – muitas vezes, tradições que se destoam dentro do próprio país. Quem lê os Contos gauchescos de Simões Lopes Neto, por exemplo, nota que aquele livro, aquelas histórias, pertencem unicamente ao Rio Grande do Sul. Quem lê As aventuras de Tom Sawyer, de Mark Twain, e A leste do Éden, de John Steinbeck, vê-se inconfundivelmente envolvido numa história do sul dos Estados Unidos em diferentes épocas. Já Pulso, livro de contos de Julian Barnes recém-publicado no Brasil, é tipicamente inglês.
Não, os textos de Pulso não são um registro histórico de algum momento específico da Inglaterra, suas mazelas ou triunfos. Julian Barnes narra nos 14 contos casos de relações entre amigos, casais e amantes. Cada texto esconde em suas entrelinhas alguma reflexão ou crítica ao amor, à classe média, às amizades, à ignorância, ao conservadorismo, todos eles centrados em personagens que estão passando por alterações em suas relações com o resto do mundo – e de uma forma que o leitor, sem saber reconhecer exatamente como, percebe serem atitudes e falas que se esperariam de um inglês com humor ácido e sofisticado.
O primeiro conto, “O vento leste”, não parece ser a melhor escolha para abrir o livro. Nele, um narrador conta como um corretor imobiliário engata um relacionamento com uma garçonete estrangeira, recatada e silenciosa, que pouco revela da sua vida ao homem. Levado pela curiosidade de conhecer mais a mulher com quem aprofunda a relação, o protagonista percebe que há algum segredo em sua história, alguma coisa que lhe aconteceu no país de origem – a Alemanha – que modificou a sua personalidade. O conto parece não engrenar, não ir para lugar algum e não apresentar um clímax convincente, que justifique a atenção do leitor. Mas se cabe aqui um conselho, não espere que isso se repita no resto de Pulso: o que vem depois de “O vento leste” fica muito melhor.
O livro segue com o primeiro dos quatro contos “Na casa de Phil e Joanna”, em que um grupo de amigos se reúne, em tempos diferentes, para jantares regados à bebida, cigarros e discussões sobre política e comportamento. Nem todos os personagens são identificados por Barnes, mas o leitor os diferencia por meio dos diálogos e pelas vozes que constrói para cada um. Os temas dos contos se entrelaçam – envelhecimento, eleições nos EUA, Guerra no Iraque, sexo, amor, geléia de tangerina, a Inglaterra no meio disso tudo – montando uma teia de assuntos que tornam o texto ainda mais ágil e natural. Há pouca narração, o foco todo está nas falas das pessoas em volta da mesa e espalhadas pela sala da casa, no tom e no que elas falam. Tudo comentado, debochado, debatido, a partir do ponto de vista dos homens e mulheres da classe média alta inglesa com seu humor irônico.
Em “Na cama com John Updike”, Julian Barnes apresenta duas escritoras veteranas, amigas de longa data, relembrando o início da carreira, o sucesso que alcançaram e resgatando os relacionamentos que mantiveram com outras pessoas da área literária. O texto todo guarda uma tensão entre as duas, que parecem pisar em ovos quando trazem à tona esses relacionamentos que mantiveram com os mesmos homens. A toda hora, fica evidente que elas tentam esconder a rivalidade de uma com a outra em detrimento da amizade, onde o narrador percebe silenciosamente que tanto uma quanto a outra vê falhas em seus comportamentos e trabalhos, mas são educadas demais, e em nome de anos de convivência não se permitem julgar ou criticar.
Das relações abordadas no livro, o casamento é a mais recorrente, tema de vários dos textos que podem variar de época e lugar. “O jardim inglês”, “Invasão” e “Linhas do casamento” são três dos contos da primeira parte do livro que se centram nas rotinas do matrimônio e do romance. No primeiro, ao se mudarem para uma nova casa, o casal se vê envolvido no cuidado de seu jardim – ele querendo cultivar uma horta, ela montar um jardim florido e pomposo para convidar os vizinhos para churrascos. No segundo, o homem separado pratica com a nova namorada o mesmo passatempo que ocupava as folgas dele com sua ex-esposa, praticamente invadindo a vida da mulher com as caminhadas incessantes feitas em grupo. Já no terceiro, um viúvo volta a uma ilha turística que sempre visitava com a esposa, como se estar lá, sem ela, fosse fazer a tristeza pela sua perda acelerar e logo passar, recordando todas as fases pelas quais o casamento havia passado. Os três relacionamentos mostrados nesses contos baseiam-se muito na rotina dos casais, nos movimentos repetitivos que imediatamente remetem a atividades feitas exclusivamente com um parceiro ou parceira – ir à loja de jardinagem comprar ferramentas, flores e terra; subir colinas e atravessar estradas caminhando; observar a paisagem de uma ilha paradisíaca. Todos os personagens ligam a história de suas relações a essas atividades, uns tentando, talvez, superá-las, outros procurando reviver novamente uma sensação que agora não têm mais.
Julian Barnes consegue escrever muito bem sobre diferentes temas e épocas, como se vê na segunda parte de Pulso. Os relacionamentos ainda estão presentes, mas agora as personagens são mais variadas: em “O retratista”, um pintor de tempos passados fica indignado com o tratamento que seu contratante dá a ele e seus empregados. Mudo, ele comunica-se apenas através de um caderninho onde as pessoas escrevem as coordenadas para seus retratos, e enquanto fala de seus outros trabalhos e o que acontecia na casa do homem “nobre” que tentava pintar, expõe a indiferença com que sempre teve que lidar. Um tempo ainda mais remoto é retratado em “Harmonia”, em que um médico usa métodos inusitados para a época a fim de curar a cegueira de uma jovem pianista. O atraso científico, a desinformação e o conservadorismo de uma sociedade ainda inundada por crenças levantam rumores sobre o médico, apesar dos resultados que consegue.
O amor retorna, enfim, em “Cumplicidade”, “Carcassonne” e “Pulso”. Se em um dos contos ambientados em volta da mesa de jantar de Phil e Joanna nenhum dos convidados foi capaz de proferir uma palavra sequer sobre o que significa o amor, “Carcassonne” é todo dedicado ao romantismo desse sentimento. E aqui o talento de Julian Barnes de resgatar o inusitado aparece: para mostrar como, de forma fulminante, o amor se abate sobre duas pessoas, utiliza como exemplo o encontro de Giuseppe Garibaldi, o herói italiano que lutou na Guerra dos Farrapos, com a jovem Anita. O fato histórico é o pontapé para Barnes falar de outros casais e de como, depois de tanto tempo, continuam unidos e amando um ao outro. A mistura de assuntos não parece ter ligação alguma entre si, assim como nos contos do jantar, mas num todo esse mosaico de temas faz sentido – como falar de Garibaldi e Anita e, no parágrafo seguinte, comentar que o que o homem come afeta no sabor de seu esperma.
Pulso apresenta uma narrativa que explora bem as relações afetivas e sociais entre os ingleses, aproveitando todo o espaço do conto: os enredos se desenvolvem sem percalços ou pontas soltas, o leitor se vê ligado a cada personagem com imperturbável atenção. Ao mesmo tempo em que os contos parecem guardar um teor melancólico ao falar de todos esses relacionamentos, perdas e impaciência com as convenções sociais, ele guarda aquele humor inconfundível que se entranha em cada parágrafo, arrancando um riso sutil e uma reflexão cuidadosa do leitor sobre aquilo que preenche a vida de todos, mas que por muitas vezes esquecemos de dar atenção: nosso convívio com as outras pessoas.
::: Pulso :::
::: Julian Barnes (trad. Christina Baum) :::
::: Rocco, 2013, 240 páginas :::
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Taize Odelli
Escreve no R.izze.nhas
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