Os textos de Noll pedem uma tresleitura, isto é, exigem do leitor um grande esforço para construir sentidos
João Gilberto Noll ocupa, sem dúvida alguma, lugar privilegiado no mais elevado panteão dos autores brasileiros da atualidade. Vencedor do Prêmio Jabuti em cinco ocasiões, premiado pela Associação Paulista de Críticos de Arte duas vezes e finalista do Portugal Telecom em outras duas, conta ainda com um Prêmio Ficção da Academia Brasileira de Letras, um Prêmio Fato Literário e um Prêmio Bravo! Prime em seu currículo de sucessos. Porém, antes de mais nada, Noll é uma dos autores vivos mais lidos e estudados no ambiente universitário, tendo a obra esmiuçada em pilhas de teses, dissertações e artigos. Todo esse reconhecimento por parte do sistemão ou mainstream literário poderia ser facilmente explicado caso Noll pertencesse ao meio acadêmico, caso ele fosse uma personalidade extrovertida e/ou hábil no manejo das diversas mídias, caso seus livros fossem (pelo menos em certa medida) consonantes às formas mais clássicas – ou conservadoras, se quiserem – de se fazer e pensar literatura. Mas não é nada disso. Resta, como possível explicação, o poder encantatório da linguagem de Noll, que vem sempre dar vida a um texto-enigma cujo surrealismo convida, ou melhor, intima o leitor a criar (eu disse criar, e não buscar) significados.
Essa assertiva é particularmente verdadeira quando aplicada aos livros que Noll lançou a partir de 1999, excetuando-se, quem sabe, aqueles pensados para o público juvenil (Sou eu!, O nervo da noite e O anjo das ondas). Nos romances que se seguiram a Canoas e marolas, seria exagero falar em trama e quase uma liberdade poética falar em personagens: há, de fato, sempre uma mesma personagem, singular, um homem brasileiro, de meia idade, de sexualidade exacerbada, solitário e errante, que, circulando por vários países e ambientes, envolve-se em cenas que poderiam ser bem descritas pela seguinte tríade de adjetivos – insólitas, escatológicas e picarescas. Portanto, os mais recentes livros do autor são compostos por somas de episódios vividos por essa eterna personagem, somas nas quais, a exemplo do que ocorre na operação matemática, não importa a ordem dos termos. O resultado final da ficção de Noll se produz no leitor a partir da visão panorâmica das partes. Se é verdade que um escritor escreve sempre o mesmo livro, a característica principal de Noll talvez seja não fazer o menor esforço para mascarar essa verdade. Tal transparência é devida, em parte, ao método de criação de Noll, que consiste, de fato, em um antimétodo: não utilizar planos, não utilizar roteiros; simplesmente sentar-se para escrever e permitir que as palavras fluam, de início, como um “tatear no escuro”, aglomerando-se de forma impensada, ao sabor e ao ritmo do instante, o que, com certeza, permite ao inconsciente profundamente idiossincrático do autor impor sua unicidade sobre quaisquer interferências racionais que tentem exigir ordem ou uma variedade arquitetada.
É claro que essa repetição pode desagradar a muitos leitores, bem como pode ser frustrante para alguns outra característica derivada do processo criativo de Noll: tratam-se de romances que, claramente, não sabem aonde vão. Nem o próprio autor sabe (“Quando começo a escrever um romance, não sei exatamente onde ele vai dar”, já declarou o autor em artigo para o Estadão). Apesar de haver uma segunda etapa em seu processo criativo, etapa na qual Noll busca dar sentido à massa elocutiva gerada de modo pulsional, tornando o todo um pouco mais coeso, o produto final é sempre caótico. Por isso, seus romances podem não ser dos mais palatáveis para quem extrai especial deleite estético perante uma obra quando percebe que, nela, nada sobra e nada falta, que ali tudo se encaixa e que, chegando-se à última frase, nota-se o domínio absoluto de um autor que, durante todo o percurso, esteve ciente e senhor de sua criação. Nos livros mais recentes de Noll, nada disso ocorre. Há muitas arestas e hiatos, pouca lógica neste universo que alguém já definiu como “realismo demencial”. E assim é, mais uma vez, em Solidão continental.
Antes de mais nada, uma tentativa de descrever o enredo (?). Solidão continental narra, em primeira pessoa, a viagem de um homem de meia idade, professor de português, dos Estados Unidos ao sul do Brasil, passando pela Cidade do México (no país dos ianques, envolve-se com um recepcionista de hotel sobre o qual projeta o espectro rejuvenescido, quase impúbere, de um antigo amante, aproxima-se de um mórmon e ex-combatente da Guerra do Iraque e também, fugazmente, de um jovem soldado brasileiro; já na terra dos astecas, vive uma estranha experiência sexual com a filha do jardineiro do Museu Trotski). Trata-se do personagem típico de Noll: um homem arredio, quase autista, repleto de incertezas, errante, sem destino certo, estrangeiro onde quer que esteja – até mesmo em sua própria terra. Tanto é assim que, chegando a Porto Alegre, sua cidade natal, o protagonista-narrador continua vagando, agora em uma sucessão de passagens oníricas, na companhia de Frederico, um jovem aluno seu que parece ser italiano (e apenas parece, porque, como se verifica em outros textos de Noll, as personagens de Solidão continental não têm fronteiras bem definidas; ao contrário, liquefeitas, são quem parecem ser e não o são, exibem individualidades mas se superpõem umas às outras). Em certo ponto da jornada, o rapaz desfalece, e o protagonista passa a carregá-lo sobre os ombros pelos arredores de Porto Alegre. Após encontros e desencontros, aproximações sexuais truncadas, eventos sempre narrados em sucessões de lapsos temporais e espaciais, com tintas de delírio, resta ao protagonista-narrador conformar-se com o desaparecimento de Frederico e com a ânsia de retornar para casa e reaver sua solidão de proporções continentais. E é ao retornar para seu apartamento, reduto de sua reclusão, que, ironicamente, o desfecho abre-se para a possibilidade de um novo enlace, talvez até para o amor.
Frente a um enredo tão vaporoso, tresloucado, de fazer os olhinhos de David Lynch brilharem, cabem duas constatações. Primeira: como já escreveu o próprio Noll, estamos diante de um escritor “de linguagem”, e não propriamente de “tramas ou assuntos”. Segunda: de fato, os textos de Noll pedem não uma leitura, mas sim uma tresleitura, isto é, exigem do leitor um grande esforço para construir sentidos – o que, não raro, implica a busca de referenciais inusitados. Um começo possível é detectar aquele excerto que ocupa posição central no livro, tanto concreta quanto simbolicamente: trata-se do trecho que faz a passagem do sexto para o sétimo capítulo (são quatorze ao todo) e que parece resumir a essência do conjunto. Quando o narrador desperta em uma pousada no campo, junto de Frederico, e este vem a desaparecer, lemos:
Eu precisava renunciar à hipótese de que ele já se situava sob o meu domínio. Se sumisse talvez fosse o melhor. Que eu voltasse à minha solidão sem me abater. Nela tinha as minhas referências todas ordenadas, eu a abastecia com algumas obsessões, como o pensamento sobre o que eu perderia se viesse a morrer nas próximas horas.
Esse é o trecho que antecede uma das cenas mais marcantes do romance: aquela em que o protagonista toma Frederico sobre os ombros e sai a carregá-lo sem destino certo, por quilômetros e quilômetros. Para muitos, certamente, a associação imediata se dará com a via crúcis, uma via crúcis na qual o solitário mártir é um protagonista em busca de redenção e na qual a cruz assume a forma humana daquele que, nas palavras do crítico Alfredo Monte, é “o eterno garoto que transa e não transa, aparece e desaparece, é anjo de vida e de morte ao mesmo tempo, e que no final, não é nada, apenas uma figura de passagem, recortada de um fundo fuliginoso devido a um esboço de desejo”. No entanto, uma tresleitura ainda mais promissora talvez esteja em enxergar, nesta cena central, uma recriação do périplo inicial do profeta Zaratustra, o qual, segundo escreveu Nietzsche no preâmbulo de seu famoso livro poético e satírico, escolheu um cadáver como seu companheiro de andanças após descer da montanha para se juntar, novamente, à humanidade.
Diante do cadáver de um acrobata que, por acidente, despencou de uma maroma presa a duas torres (“o homem é corda estendida entre o animal e o Super-homem: uma corda sobre um abismo”, lembram-se?), o profeta persa diz: “Na verdade, Zaratustra fez hoje uma boa pesca! Não alcançou um homem, mas um cadáver! Coisa para nos preocupar é a vida humana, e sempre vazia de sentido: um trovão lhe pode ser fatal.” Após tais palavras, o profeta deita o cadáver às costas e retoma seu caminho. De maneira análoga, o protagonista-narrador de Solidão continental não encontra um verdadeiro homem em seu caminho, isto é, não consegue ter contato com outra alma humana e vívida, aberta a comunhões, pois eis que a incomunicabilidade se impõe e todas as criaturas com quem esbarra em sua viagem não são nada mais do que sombras fátuas de suas próprias fantasias de irredimível solitário. O jovem Frederico é uma das últimas personagens humanas com quem o protagonista tenta aproximação; porém, mais uma vez, os corpos e os espíritos de ambos apenas se tangenciam. Dobrando-se à força das impossibilidades, o protagonista, assim como fez Zaratustra, toma o corpo do outro sobre as costas e com ele peregrina, usando o peso da carga inerte para conferir concretude à sua condenação. Zaratustra carrega um corpo sem vida; a personagem de Noll, por sua vez, carrega alguém que ainda vive, mas que ele julga prestes a morrer. E, de fato, é como se, a partir deste ponto do livro, Frederico morresse: ele não fala mais nada ao protagonista e torna-se cada vez mais fugidio, mais fantasma do que gente, até evanescer de uma vez por todas.
Após enterrar o corpo do acrobata, Zaratustra decide seguir sozinho o seu caminho e fala: “Enterrei-te bem, na tua árvore oca, deixo-te bem defendido dos lobos. Separo-me, porém, de ti; já passou o tempo. Entre duas auroras, me iluminou uma nova verdade. Não devo ser pastor nem coveiro. Nunca mais tornarei a falar ao povo; pela última vez falei com um morto.” Logo adiante, Zaratustra ouve um grito de ave e enxerga, voando em círculos sobre a sua cabeça, uma águia que traz consigo uma serpente enroscada ao pescoço: “São os meus animais! — disse Zaratustra, e regozijou-se intimamente. (…) Encontrei mais perigos entre os homens do que entre os animais; perigosas sendas segue Zaratustra. Guiem-me os meus animais.”
Na etapa final de seu caminho, o protagonista de Solidão continental, isolado (ou talvez, mais precisamente, exilado), também encontra, nos animais, a presença de um outro – que pode ser familiar ou assombroso. Já às portas do desfecho, andando por uma propriedade rural um tanto desolada e tentando achar o caminho de volta a Porto Alegre, o narrador encontra uma gata grávida, de mamas túmidas, com quem ele troca alguns toques, alguns afagos, chegando a sentir-se excitado:
(…) a gata então desfez sua posição e pulou sobre a minha perna e se foi autônoma a esperar por sua cria. De repente, do nada, eu me senti assim como se estupefato. Sim, não que houvesse alguma coisa ou alguém diante do que eu pudesse me sentir em raro espanto. A ocorrência da felina já tinha passado.
Mais à frente, surge outro animal, com o qual o protagonista tem um contato bem mais inquietante:
(…) era um bicho irreconhecível, grisalho, pelas frestas do pelo ralo via-se a carne azulada, um bicho que se achegara e recuara e agora vinha novamente, se desentranhando da terra. Inadmissível que um animal desconhecido do meu vocabulário zoológico viesse tentar alguma conveniência no meu corpo (…).
Afastado dos humanos (ou das sombras humanas) com quem cruzou ao descer da sua montanha de isolamento (e na iminência de a ela retornar), o protagonista chega a se perguntar se não deveria levar o animal consigo aonde quer que fosse, talvez até sua casa, ou pelo menos por mais algumas horas de caminhada a que precisasse ainda se submeter até resgatar sua solidão. Cogitar a hipótese de aliar-se a um bicho nem bonito nem repugnante, sem “desconfianças nem hostilidade”, cujo toque provoca calafrios, é a negação última da crença no humano, o pessimismo florescendo e insinuando-se definitivo. Porém, tudo muda quando chega finalmente ao seu apartamento. Encontra o filho da empregada chorando e mal termina de acalentar o bebê e fazê-lo dormir quando Daiane, a empregada, surge. Vão ao quarto dele para que ela cuide de um ferimento na cabeça que ele sofreu ao longo de sua errância. A proximidade entre os dois se acentua, e assim conclui o narrador: “E vi que ia beijar seus lábios entreabertos. E tirar sua roupa. E depois a minha. E ia, sim, lentamente… entrar…”
É findo o preâmbulo da história de nosso Zaratustra porto-alegrense. Viriam, agora, os discursos; contudo, a narrativa deste breve romance se encerra, e as palavras desmaiam em reticências, caindo no vazio criado por uma completude inesperada. Talvez seja esse o mais genuíno niilismo.
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P.S.: Para encerrar, cabe dizer que, em Solidão continental, li uma das frases mais belas e provocativas com que deparei nos últimos tempos, uma daquelas sentenças que ficam por horas, dias, semanas, ressoando na mente, acumulando significados e parindo monstros: “Naquele bosque, a mistura entre o frescor e a degeneração davam um tom plausível à hora.” Mais João Golberto Noll, impossível.
::: Solidão continental :::
::: João Gilberto Noll :::
::: Record, 2012, 128 páginas :::
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Rafael Bán Jacobsen
Físico da UFRGS e escritor. Seu romance Uma leve simetria (2009) foi finalista do Prêmio Açorianos.
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