Resenha de "Terra de Casas Vazias", de André de Leones
O tempo é o pior inimigo do luto. Com uma mobilidade pulverizada e sub-reptícia, ele ataca, com garras apontadas, o manto grosso, incapaz de aderir luz, que veste a casa e as pessoas marcadas pela perda. Não há o que fazer. Mesmo firmado um pacto com a tristeza, mesmo com o esforço de habitar a memória com o que se encadeou até a tragédia, aos poucos o retrato se apaga e a existência passa a ser um ultraje, um desperdício. O cruel é que o rarear das lembranças não acalma o insuportável da dor, e o seguir em frente é como excursionar por vazios provocados pelo impacto da ausência; as mortes daqueles que se foram e daqueles que restam. A motricidade dos dias insiste que erga e cabeça, vire a página, mas superar é um processo inútil quando o único desejo é ficar encerrado naquele minuto antes, o minuto antes do fim.
Teresa não quer seguir em frente. Passa o dia dopada, flanando em movimentos zumbióticos, até se aninhar num canto do quarto vazio do filho. Negligencia a própria saúde e o trabalho, não tem vontade sequer de olhar os folhetos de viagem que Arthur, seu marido, insiste que dê uma chance. Ele acha que vai ser bom, que a distância geográfica os encaminhará para um recomeço. Mas Teresa vê a possibilidade da viagem como a quebra da condição constituída pela morte do filho.
É com esse impasse que o escritor goiano André de Leones inicia o ótimo Terra de casas vazias, seu quinto e mais ambicioso livro – caso exista algo mais ambicioso do que escrever um livro sobre o fim do mundo. Dividido em arcos (ou segmentos dramáticos), o romance acompanha personagens assombrados pela instauração ou pela iminência da perda, que se encontram, entre indas e vindas temporais, em metrópoles que influem, tanto quanto os atores, de maneira decisiva na trama. Cada capítulo é introduzido pelo próprio autor, que estabelece, em mínimos apontamentos, o decorrer dos fatos seguintes, sugerindo que o leitor se deixe guiar por nortes preestabelecidos. E está aí uma das muitas habilidades de Leones: manter o que seria explícito, e necessário para muitos autores, entre camadas de sombras, sugerindo acontecimentos que transportam os limites do livro e se desenrolam nos entremeios da leitura.
Teresa e Arthur vivem em Brasília, assim como Brasília vive neles. Arthur é assessor de um senador às voltas com um escândalo político, inegavelmente o principal estigma que paira sobre a cidade. Mas quebrar o luto e se aventurar pelo mundo não seria também um gesto de corrupção? Teresa insiste que sim, e sua relutância diante das investidas do marido expõe Arthur como alguém se mantém fiel ao teatro unicamente por respeito à dor da esposa. Ele convive com pensamentos dissidentes, que se prenunciam no reencontro com a ex-mulher, Rita. Esse impróprio triângulo amoroso denota a capacidade de Leones de construir personagens críveis, longe de esteriótipos, que causam imediata empatia no leitor. Quando rememora o momento em que Teresa e Arthur se conhecem, na fila do cinema, por exemplo, ele troca magistralmente os traços emocionais de ambos os personagens afetados pela tragédia e, desse modo, entretece uma das cenas mais vibrantes do livro. Nesse momento, é como se pudesse ouvir, ao fundo, “Eduardo e Mônica”, do Legião Urbana, icônico grupo nascido no seio do Planalto Central, com sua melodia simples e letra cativante.
É comum constar, nas críticas aos escritos de Leones, uma influência robusta do cinema e da música. Aqui, pode se agregar à essa observação a literatura. No primeiro arco, há uma cintilante demão do verniz que cobre as estruturas narrativas de notáveis escritores britânicos surgidos na década de oitenta, como Ian McEwan e Julian Barnes, que é encorpada, sem nó ou dano na tessitura, na segunda parte, pelos tons opacos que emplastam o universo de James Ellroy. Ao entrar na história de Aureliano e Camila, Leones flerta com o gênero policial, valendo-se de um dos maiores impasses dos protagonistas dessas histórias: a capacidade de resolver o problema dos outros e não os próprios.
Aureliano é um policial civil que soluciona, diuturnamente, casos ligados a crimes horrendos na face miserável de Brasília, mas não consegue desvendar a doença que acomete Camila, sua esposa, nem o tempo que lhe resta. A morte é uma presença constante, mas, escorado na impassividade de Isaías, um velho policial, ele começa a questionar sua relação com a finitude diante de uma indiferença crescente à crueza cotidiana. Teme não mais se abalar com a perda, mesmo com o vazio que se impõe no leito de hospital onde rareia sua esposa.
Aqui também é onde se descortinam os elos que interligam os fragmentos da história. Aureliano é primo de Arthur, e engendrar os encontros, sejam físicos ou mencionados, a partir daí é como preencher as molduras de um álbum de família. Ao se arriscar nesse exercício de casualidades (ou implicações do destino), Leones acaba por irmanar seus enredos aos romances e roteiros do mexicano Guillermo Arriaga, autor de O búfalo da noite e Babel. No entanto, ao contrário do manejo para entrecruzar destinos moldados por causa e efeito, em Terras de casas vazias o que impele os personagens não são reparações, mas acontecimentos de um tempo já incinerado.
Casas vazias somos todos nós
A terceira parte regressa para a metade final dos anos 80, assim como parece se conectar à própria infância do autor. Os alicerces de Brasília são substituídos pelas fileiras de casas com aparência de desabitadas em Silvânia, interior de Goiás, e o foco da trama passa a ser o encontro entre Aureliano e Arthur, meninos ainda com menos de uma década de vida. Esse tempo de descobertas sofre uma ruptura, quando Aureliano é enviado a passar uns dias na casa do primo por conta da separação dos seus pais. O estranhamento para com a cidade, a casa emprestada e o próprio Arthur constitui essa, que é a melhor parte do livro, pontuada por momentos tocantes (a cena da mãe e do filho no ponto de ônibus é encantadora), referências da época e diálogos precisos, onde os silêncios dão a dimensão da intimidade do autor com tudo ao redor.
Leones está ali. Fica a impressão de que, ao retornar à cidade onde foi criado, ele conjura o espectro do menino que foi (talvez o do menino eletrocutado que leva o seu nome?), revivendo os jantares e as missas intermináveis, caminhando pelas ruas desertas pressionado pela inadequação, pela incapacidade de desembalar numa fuga sem volta. Esse é o momento onde sobressai uma parte da fundação do romance: o questionamento religioso. Diante do aniquilamento, os personagens controvertem a legitimidade de um deus que permite filhos morrerem tragicamente, crianças serem estupradas e assassinadas, que negligencia o ataque de um mal degenerativo. Preservar a fé, desse modo, é um exercício de autopreservação ou apenas contribui para a perpetuação da vacuidade da vida? Não seríamos todos casas vazias, afinal?
Silvânia também explicita o uso de uma descrição mais apurada da cidade para melhor sublinhar as características dos personagens. Com seu marasmo, faz com que, pouco a pouco, o cenário adquira a textura de uma pintura. Brasília é monocromática, silenciosa e desigual. Já São Paulo soa múltipla, dinâmica, e é onde vivem Luís Guilherme e Maria Fernanda, que recebem a visita de Isadora (também mãe de Aureliano). Isadora, uma mulher de 52 anos, traz uma notícia insólita e, até certo ponto, imantada por uma ironia cruel, um vislumbre de redenção em meio à ciranda de perdas. Ela também é mãe de Marcela, uma jovem escritora que conheceu Nathalie numa clínica de reabilitação de drogas e vão morar em Jerusalém. E aqui Leones usa de um artifício literário fascinante, encaminhando o livro para o fim.
Jerusalém é um bálsamo. Uma terra estrangeira, marcada por costumes, regras e a ocorrência da fé infiltrada no ensolarado do dia, cuja distância e atmosfera surgem como algo impensável, ficcional. Valendo-se dessa impressão envelopada do real, Leones cria uma ficção dentro da ficção na apresentação de um conto da personagem Marcela, uma narrativa que se diferencia de todo o resto e constrói um olhar desterrado sobre quem busca redenção no deslocamento, sobrepondo cidades e encontrando um encaixe perfeito entre Goiás e Israel. Nesse novo plano, há encontros e tentativas de reconciliações. Teresa e Arthur se reconhecem como amantes, deixam-se iluminar. E, mergulhados na infinitude do Mar Morto, enxergam a possibilidade de um caminho, ainda que, mesmo despidos do luto, todos os caminhos reservem o insustentável peso da perda.
A dinâmica adotada no novo livro pode implicar numa retomada às estruturas que compõem obras como Hoje está um dia morto (2006) e Como desaparecer completamente (2010), mas há aqui uma forte associação com Dentes negros (2011), pela escolha de contar a história após o desmoronamento. No caso do romance anterior, passado após uma hecatombe, o mundo que todos conhecemos; em Terra de casas vazias, um mundo particular, cuja reconstrução cabe a duas pessoas. Por ser capaz de transitar com igual segurança em ambos os universos, Leones afasta de vez o insensato título de autor em ascensão e se estabelece como um dos mais sólidos nomes da literatura contemporânea brasileira.
::: Terra da casas vazias :::
::: André de Leones :::
::: Rocco, 2013, 320 páginas :::
::: compre na Livraria Cultura :::
Sérgio Tavares
Jornalista e escritor, autor de Queda da própria altura (2012), finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala (2010), vencedor do Prêmio Sesc.
[email protected]