Retratos de observação

por Sérgio Tavares (02/04/2014)

Em “A calma dos dias”, Rodrigo Naves transita por diversos gêneros literários

"A calma dos dias", de Rodrigo Naves. (Companhia das Letras, 2014, 176 pp.)

“A calma dos dias”, de Rodrigo Naves. (Companhia das Letras, 2014, 176 pp.)

Há um falar multívago em A calma dos dias, de Rodrigo Naves. Dezesseis anos depois de lançar o sui generis O filantropo, o professor e crítico de arte retorna ao trabalho ficcional com um mosaico refinado de narrativas poéticas, ensaios, perfis, impulsos filosóficos e obituários. São 54 textos breves sortidos num volume que, embora incorra à multiplicidade de gêneros, tem um objetivo claro: discutir a aproximação entre vida e arte num mundo em que o frenesi para o cumprimento de tarefas oblitera o tempo reservado intransferivelmente à contemplação.

Naves tem o perpetuamento do náufrago, o olhar incansável que vasculha a paisagem circundante até descobrir a menor fissura, o indício da textura residual, as nuances que se escondem na primeira demão do plano, conforme uma tela constituída por sobreposições que só serão discriminadas quando vistas a determinada distância. Ao buscar o polimento das formas, o escritor encontra, na prosa, a medida exata entre sensibilidade e carpintaria. A perícia linguística daqueles que conseguem reduzir blocos maciços de ideias em frases que de tão esmeradas ressoam.

O resultado é a irradiação da concretude urbana com feixes intermitentes de lirismo. Ainda que o cotidiano não seja reduzido de suas características triviais, há um esforço em transformá-lo num quadro vivo em incessante transformação, onde cada elemento assume uma propriedade plástica. Desse modo, um urubu, em pleno voo sobre a cidade, “risca com uma leve linha negra o azul do céu, para acentuar a leveza e a imensidão do espaço”. A mesa de trabalho, “os livros distribuídos em pilhas, lápis, caneta, borracha à mão” que cobraram anos para se entregarem à disposição certa, possibilita ao proprietário, então, sentar-se “como se vestem as luvas”. Há um ângulo especial de se encarar as coisas que confere originalidade à narrativa. Dispor ao leitor um trecho, um fragmento de cena, e deixar ao seu encargo a maquinação de todo o resto. A falta de resposta torna essa tessitura única e fascinante.

Um bom exemplo é o conto “Teoria do cão”, onde um homem adota o vira-lata de um mendigo morto e, por conta da recusa do animal em se adaptar ao conforto da casa, decide entregar-se à vida vadia, assumindo-se um morador de rua. Não há explicação objetiva para tal decisão extrema. O que levou um indivíduo aparentemente normal a se submeter à natureza torpe de um animal. As lacunas deslocam o significado das ações para o terreno da subjetividade, onde imperam as sensações, as memórias, a cadeia de acontecimentos cujos sentidos não carecem de explicações empíricas. Adiante, em “O melhor amigo do homem”, Naves inadvertidamente dá uma pista sobre a fidelidade ao vira-lata. Algo tão radiante que merece ser reproduzido na íntegra:

Porque os cães não falam eles são os melhores amigos do homem. Porque se os cães falassem haveria entre homens e cães comunicação e não amizade. Coisas que se supõem, é bem verdade, mas que eventualmente também se excluem.
Disso estão livres os cães. Há na meiguice triste de seus olhos o desconsolo de quem conhece os limites das palavras mais a ternura dos sentimentos não nomeados. E é precisamente dessas duas experiências que são feitas as amizades.

Por outro lado, é o desencanto penetrante que movem os ensaios, onde a experiência crítica e a relação íntima com a arte ora funcionam como um canal ora como um contraexemplo para analisar aspectos latentes no mundo contemporâneo. O culto à imagem, a instituição de um padrão superior de beleza, os valores da moda urbana, o pessimismo direcionado à arte contemporânea são parapeitos para se debruçar sobre as engrenagens da indústria cultural que fabricam semideuses modernos como Michael Jackson e Gisele Bündchen, que deturpam a percepção daquilo que vemos e o seu real significado.

- Rodrigo Naves -

– Rodrigo Naves –

No arguto “Lar das moças cegas”, o autor parte da descoberta inesperada de um retiro para mulheres com deficiência visual, para problematizar o consumo da privacidade alheia, a audiência de reality shows que ocorrem em casas de vidros, onde “tudo é transparente, exteriorizado, visível”, embora “revele um aviltamento supremo do olhar e de seu correlato, a distância”. A disputa pelas angústias e pelos conflitos dos outros cega a própria desdita de quem se apega ao exercício de voyeurismo. “Afinal, a vida é uma bolha de sabão, com a vantagem de quem a infla também poder habitá-la”. Mas a que plano pertence essa vida?

Caso enxergados no papel de personagens, à ficção. Participantes de um jogo, à realidade. Não é tarefa tão simples, no entanto. Novamente tudo se reduz à percepção. Portanto, mais que certezas, existem ambivalências e logros, correntes de pensamentos que coexistem infinitamente, mas não se cruzam. Isso é posto com clareza em “Ainda sobre arte e vida”, uma tentativa de elucidar a matéria que fundamenta os textos. Teria a arte a capacidade de intervir de maneira lúcida no dia a dia ou estaria confinada à esfera da fantasia e da imaginação, desse modo incompatível com o cotidiano? Sem dar fim à discussão, Naves defende o seguinte argumento:

(…) a vantagem da arte sobre a espontaneidade cotidiana diria respeito à possibilidade de suas experiências serem compartilhadas por mais gente, por serem reiteráveis, ainda que se abdicasse de um controle que conduzisse sempre aos mesmos resultados.

No romance mais célebre do argentino Ernesto Sabato, O túnel, o poder de comunicação da arte serve de recurso para rivalizar o íntimo e o mundano. Em sua recente exposição, o pintor Juan Pablo Castel encanta-se por uma mulher que enxerga um aspecto peculiar num quadro, diferente de todos que transitam pelo salão. Ele então passa a procurá-la, descobre seu local de trabalho, estabelece um relacionamento alimentado por uma estranha obsessão. Castel não se enlaça aos sentimentos ou à compleição física, mas ao olhar, a capacidade de María Iribarne de reparar o que era invisível aos outros. Ocorre que aqui, a falta de controle especulado por Naves, conduz a um diferente resultado. Um bem terrível, por sinal.

Sérgio Tavares

Jornalista e escritor, autor de Queda da própria altura (2012), finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala (2010), vencedor do Prêmio Sesc.

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