A rebeldia desafia o autoritarismo
Nas visões monásticas, o inferno é o lugar do riso. Todo sistema autoritário se protege das críticas opositoras e se cuida, principalmente, de não ser ridicularizado.
[este post é uma versão do capítulo 10 de Humor é coisa séria, de Abrão Slavutzky, recém-lançado pela Arquipélago Editorial]
O humor é rebelde. Logo, é necessário saber o que mesmo significa rebeldia. Ela é definida pelos dicionários como uma atitude contra a ordem, as instituições, o poder. Rebelde é estar contra, não se submeter, insubordinado, desobediente, teimoso. É fácil perceber a carga negativa que há nessas definições. Na verdade, o rebelde não é só quem resiste à autoridade, mas é, principalmente, quem primeiro mudou de ideia ao pensar algo de errado com a sociedade. A forma positiva de se pensar o rebelde é como um crítico, livre para pensar, irreverente, desafiante do proibido. Os artistas são rebeldes, os cientistas que não se conformam com o já descoberto, os que contestam poderes autoritários e os inovadores em geral. O que há de comum entre todos é a coragem de criar e criando desafiam. O rebelde é contra as regras rígidas e intolerantes. Quando são vitoriosos, são exaltados, chegam a ser tratados com destaque. Quando os rebeldes fracassam, são relegados, marginalizados, alguns presos e até mortos.
Entretanto talvez se possa afirmar que a própria condição humana começa com a rebeldia. Por exemplo, o amor ao saber não se submete às proibições, como ocorreu com a história do Paraíso na Bíblia. Está escrito no Gênesis que no sexto dia da criação o Todo-Poderoso fez o primeiro homem, Adão, do barro e com um sopro criou sua alma. Algum tempo depois, Ele viu o homem tristonho, quieto, então decidiu dar-lhe uma companhia, a Eva. No Paraíso tinha tudo, mas faltava o mais importante, o saber, que foi descoberto por Eva e Adão ao comerem da árvore do conhecimento. Foi só nesse momento de rebeldia que ocorreu a ruptura com a natureza, e nasceu a cultura, já rebelde. O primeiro casal, ao experimentar o fruto proibido, se percebeu nu e logo tapou seus genitais. Da primeira rebeldia humana nasceu o indispensável erotismo. O erotismo é próprio da condição humana, então, como definir a atitude de Eva como pecadora? Comer o fruto proibido revelou a ousadia de Eva, que ousou saber (sapere aude – diria Kant). Deveríamos ter uma dívida de gratidão com Eva, que nos presenteou com as riquezas e variações do erotismo.
Milhares de anos depois, o humorista Millôr Fernandes escreveu A Verdadeira História do Paraíso. Foi expulso da revista O Cruzeiro por pressões da Igreja Católica. No capítulo 11 de sua história, pode-se ler:
Eva, de repente, descobrindo uma bela cascata, resolveu tomar um banho de rio. A criação inteira veio então espiar aquela coisa linda que ninguém conhecia. E quando Eva saiu do banho, toda molhada, naquele mundo inaugural, naquela manhã primeval, estava realmente tão maravilhosa que os anjos, arcanjos e querubins, ao verem a primeira mulher nua sobre a Terra, não se contiveram, começaram a bater palmas e a gritar, entusiasmados: “O AUTOR! O AUTOR! O AUTOR!”.
Millôr pagou por sua brincadeira com a Bíblia, mas ganhou o apoio maciço da cultura da época, e o Brasil ficou mais engraçado.
Outra história de rebeldia ocorreu na Grécia com Prometeu, que desobedeceu e roubou o fogo dos deuses e entregou-o aos homens. Dominar o fogo foi decisivo para o futuro da civilização. Muitos dizem que foi a maior das conquistas humanas. Prometeu foi rebelde e pagou caro por isso, mas foi elevado a herói da humanidade. Logo, se pode concluir: sem rebeldia, não há mudanças. O início da arte, há quarenta mil anos, pode ter ocorrido por uma pequena revolta. Alguém, um dia, decidiu não sair para caçar com os demais. Não tendo o que fazer, começou a pintar e fez um bisonte na parede. Deu início assim às primeiras pinturas rupestres das cavernas.
Desde a psicanálise se poderia pensar, por exemplo, sobre a rebeldia da criança na fase anal, quando pode dar ou não dar de presente seu cocô aos pais. Em algum momento, deseja afirmar seu poder, se revolta e segura o cocô. Ao longo da vida de uma criança, antes inclusive da fase anal, ao contrariar seus cuidadores, revela sua rebeldia e se diferencia diante do outro. E depois, ao crescer, vai buscando seu espaço, se individualiza e vai gestando uma vida própria. Por exemplo, no complexo edípico, ao se instalar numa relação triangular com os pais, se por um lado a criança se sentirá excluída da relação parental, por outro lado buscará seduzir e se impor. Ao longo da vida há uma oscilação entre a submissão e a rebeldia, a passividade da obediência e atividade da desobediência. As identificações tanto repetem o modelo dos pais como também se diferenciam dele. Costuma-se dizer que o fruto não cai longe da árvore, mas depende também das inclinações do terreno em que está a árvore. Além do que, convém não esquecer que o filho recebe a influência do Supereu dos seus avós, os pais de seus pais. Ou seja, a criança não tem a ver só com seus progenitores, mas com outros pais que marcaram os seus.
Ser rebelde é assumir uma atitude ativa na vida, é ousar saber, é não se satisfazer só em consumir, por isso o poeta Wally Salomão escreveu que criar é não se adaptar à vida como ela é. Logo, não só a arte e o humor são rebeldes, mas todos que buscam o conhecimento, os curiosos que não adormecem felizes com o já foi conquistado. Todo rebelde pode pagar o preço de sua audácia diante o estabelecido como verdade, mas goza de sua liberdade e criatividade. A rebeldia do humor e do riso ao longo da história gerou tensões, censuras e perseguições, entre elas as que ocorreram no mundo sagrado.
O riso e o monoteísmo
Segundo o historiador George Minois, tanto o Cristianismo como as demais religiões monoteístas teriam excluído o riso e o humor. Ele pergunta em seu livro História do riso e do escárnio de que poderia rir um ser todo-poderoso, perfeito, que sabe tudo, vê tudo e pode tudo? Pergunta ideal para se abrirem polêmicas bíblicas. Se em linhas gerais há lógica na afirmação enfática de Minois, seu problema foi a generalização. No Livro Sagrado sobra seriedade quase sempre, mas há o riso de Sara, a primeira matriarca, criticado, mas não castigado.
Outra história engraçada é quando o primeiro patriarca tenta salvar a cidade de Sodoma (Gênesis, 18:23-33) da destruição e negocia com Deus. Argumenta sobre quantos homens bons é preciso ter para que a cidade não seja aniquilada. Propõe cinquenta homens bons, depois baixa para quarenta, trinta, vinte, dez. E, na defesa de seus argumentos em favor dos justos, dos inocentes, Abraham ousa dizer: “Tu, que és juiz de toda a Terra, não podes exercer um tal juízo”. É um espanto a frase, pois afirma que a justiça está acima do Todo-Poderoso! Na discussão, o patriarca negocia com ninguém menos que o Senhor onipotente. Comporta-se como se fosse um esperto vendedor e assim vende suas opiniões, saindo vencedor na conversa. Não há consenso sobre qual idioma ambos falaram, mas é certo que se entenderam.
No Velho Testamento o riso aparece, segundo os estudiosos, 29 vezes, e só 13 em forma crítica, por serem risos agressivos. Portanto, o riso é 16 vezes positivo, em especial no livro dos Provérbios e nos Salmos. Se é verdade que faltam sorrisos e humor no Velho Testamento, sobram, por outro lado, boas discussões. Algumas envolvendo até o Todo-Poderoso, como foi visto recentemente, ou outra entre Noé e Ele, sobre o Dilúvio, em que há um arrependimento declarado desse e a promessa de não mais destruir a humanidade. Abatido, Ele se revela, com razão, desapontado com sua própria criação – o homem. E, no sábio Eclesiastes, lê-se que há o tempo de chorar e o tempo de rir, portanto, o Velho Testamento não condena o riso.
No Novo Testamento, o riso, quando ocorre, é dos adversários de Jesus, que escarnecem dele, e há uma tese de que Jesus não ri. De qualquer forma, no século 4, João Crisóstomo sustenta que Jesus não ria, e o riso deveria ser condenado. Os Evangelhos, os Atos, as Epístolas em geral são críticos ao riso.
O Cristianismo, segundo Minois, exalta a obediência divina, enfatiza o peso do pecado, a culpabilidade, a humildade, mas pouco o humor e o riso. Santo Agostinho, por exemplo, era claramente contra o riso. São Francisco de Assis e São Tomás de Aquino tinham uma posição simpática ao riso e à diversão. Aliás, este escreveu sobre a importância do brincar, do jogo, e tinha um fino humor. Também escreveu o quanto devia à obra de Maimônides, quase seu contemporâneo, que havia exaltado a importância da alegria. Por sua vez, na Idade Média, o riso tem uma reputação negativa, como demonstrou, entre outros, Jacques Le Goff, o conhecido historiador francês. Escreveu que no meio do clero regular o riso tinha uma reputação diabólica. Nas visões monásticas, o inferno é o lugar do riso.
As ditaduras contra o humor
Todo sistema autoritário se protege das críticas opositoras e se cuida, principalmente, de não ser ridicularizado. Logo, o humor foi sempre combatido pelas ditaduras e os poderes prepotentes de toda ordem. Quem manda, quem detém o poder, tenta impor respeito servil, estimula a submissão. Nesse sentido, os poderes tanto sagrados como profanos podem igualar-se. No capítulo “O humor no Holocausto”, há algumas histórias referentes a como os humoristas, ao criarem piadas sobre Hitler e o nazismo, foram perseguidos e mortos. A perseguição aos humoristas ocorre em todas as ditaduras.
No livro de Richard Overy, Os ditadores, que é sobre Stalin e Hitler, há uma interpretação sobre o culto à personalidade. Como se impôs o estado de terror, e quais eram as semelhanças e diferenças entre os dois ditadores. Em ambos os regimes, não só seus opositores, mas o humor e a arte foram vigiados. Os artistas e humoristas sofreram ataques, foram presos ou mortos. Stalin se propôs a criar um mundo comunista cheio de esperanças para toda a humanidade. O escritor André Gide, em uma visita à União Soviética, em 1936, escreveu que “sobre todo e qualquer assunto só pode haver uma opinião”. Hitler buscou estabelecer um Reich de mil anos para dominar o mundo. Como se sabe, durou doze anos (1933-1945) e teve o seu fim com a derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial.
Os povos de ambos os países foram seduzidos, em boa medida, por uma propaganda massiva dirigida contra o outro, contra a diferença, sem possibilidade nenhuma de liberdade. Os dois ditadores foram aclamados pelas massas, despertando um fascínio assustador. No livro Psicologia de massas do fascismo, de Wilhelm Reich, é exposto como se constrói dentro da própria família esse fanatismo. Wittgenstein escreveu que no nazismo o humor foi extinto. O mesmo ocorreu na União Soviética; entretanto o humor silencioso sobreviveu entre os rebeldes às ditaduras.
O humor diante do terror
Várias vezes duvidei do valor do humor. As dúvidas eram pelo perigo de idealizar o tema que se estuda. No meio das incertezas, li algumas entrevistas de sobreviventes de campos de concentração nazistas. E fui convencido de que o humor não só alivia como pode salvar vidas. O esforço dos prisioneiros para preservar a dignidade quando tudo era feito para desumanizar também se valeu da arte de fazer piadas com a própria tragédia. Um exemplo: um judeu, que trabalhava carregando os cadáveres em um campo de extermínio, diz para outro, que está comendo: “Devagar, Schloime, para comer, pois depois ficarás pesado para eu te carregar”.
De fato, zombar da morte, mesmo pela via do triste humor negro, mostrou-se um recurso eficaz para aliviar o sentimento de desolação. Esse momento de poder tomar distância da realidade é uma forma de transcendência. Na realidade atroz dos campos de concentração, em que a morte estava sempre à espreita, o humor ajudou a atenuar o terror dos presos, dando-lhes forças para lutar contra o desamparo e a desumanização a que estavam submetidos.
Outro depoimento importante sobre humor foi do escritor Milan Kundera, vítima de perseguição política na Tchecoslováquia. Disse, em uma entrevista ao seu colega Philip Roth: “Aprendi o valor do humor durante o terror estalinista. Quando alguém tinha senso de humor, ele se sentia seguro para confiar”. No entanto, o autor de A insustentável leveza do ser, num tom depressivo, também se diz inquieto perante um mundo que talvez estivesse perdendo seu senso de humor
Há uma tendência humana a valorizar mais o traumático que atinge o cotidiano por meio de violência, dores e angústias existenciais. Os noticiários divulgam, diariamente, acidentes com morte em estradas de cidades que nem sequer se sabe onde ficam. Talvez haja dificuldade em valorizar o que não mortifica, como se fossem mais atrativas as más notícias. Uma tendência advinda da mídia que explora ao máximo para conquistar seu público.
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Marcelo Gabriel Delfino
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Glauber Martins E-mail
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