As diferentes valorizações culturais na Europa e no Brasil
Logo no inicio deste ano, em fevereiro, a Espanha – ou melhor, a Andaluzia – e o mundo perderam um dos maiores gênios incontestáveis das seis cordas, o algecirano Paco de Lucía. Saudado no mundo inteiro tanto pela sua técnica exuberante quanto pela sua profunda identidade sonora, falar em Paco não exige que se diga muito sobre sua obra, basta que se a conheça e admire, coisa que é possível para além do tempo, inclusive do tempo de sua própria vida. Talvez seja essa mesmo, afinal, a grande e única vantagem que os artistas levam em relação às demais pessoas. Um prolongamento praticamente inesgotável da vida, feito que só é possível pela sobrevivência da própria arte.
Mais do que o sucesso de vendas ou da lembrança ocasional da mídia, o traço distintivo entre artistas e artistas será sempre o seu reconhecimento. Muitas pessoas ainda confundem reconhecimento com prestígio, mas são coisas muito diferentes entre si. O prestígio é um sentimento público que, via de regra, acontece em vida. Não casualmente, tem a mesma etimologia de “prestidigitação”, que é a arte performática do ilusionismo. O prestígio, de certo modo, acompanha-se sempre dos seus meios-irmãos: o renome, a influência e a fama.
O reconhecimento, por outro lado, confunde pessoa e cultura; nele, uma inexiste sem a outra e o sentimento público que o acompanha é de conforto mútuo, de lembrança mútua, de identificação sentimental, geográfica inclusive. Pois o violonista espanhol recém falecido logrou gozar de ambas, o que não o faz um caso único nem exemplar, mas que nos põe a pensar em algumas diferenças evidentes e indisfarçáveis sobre a relação dos brasileiros, do povo brasileiro, para com seus artistas, mesmo aqueles finalmente “reconhecidos”, ou seja, os sepultados há décadas.
A título de ilustração (ou talvez de inspiração), trago dois exemplos dessa evidência. O primeiro é um busto erigido em praça pública, na cidade natal de Paco, Algeciras, muito antes de sua morte. O segundo também é um busto de bronze, mas do compositor e cantor Dorival Caymmi, em uma rua de Salvador, na Bahia. Parece até desnecessário continuar daqui em diante, mas isso significaria perder a oportunidade de cogitar algumas hipóteses de muito simples verificação.
A primeira delas importaria desfazer do descuido para com a arte pública, ou menosprezo, e assumir que isso, esse descuido, também seria uma característica intrínseca e cultural do brasileiro. Essa parece uma hipótese de dificílima contestação, porque constatar o abandono e os maus-tratos que os espaços públicos de um modo geral, sofrem no Brasil, é tarefa das mais fáceis.
Outra hipótese seria a de que o mais precário mesmo é o sentimento de reconhecimento das pessoas para com suas cidades e, daí, esse sentimento se estenderia aos seus artistas, homenageados, etc. Mas, para isso, pode haver uma explicação também. Quando uma sociedade, como manada, busca a idolatria incessante, o celebritismo fácil e investe pesadamente no consumo de bens culturais provisórios, não resta mesmo o que lembrar, reconhecer ou homenagear, mesmo se para com aqueles que justamente viveram para cantar os “valores da aldeia”.
Exagero? Pois bem, que tal fazer uma incursão Brasil adentro e descobrir onde estão as homenagens e o reconhecimento a criaturas como Baden Powell, Garoto, Dilermando Reis, Paulinho Nogueira e Raphael Rabello, para ficar apenas entre os violonistas, como Paco? Como tenho certeza absoluta de que foi em vão buscar vestígios desse reconhecimento, e para não tentar iniciar a infinita lista dos gênios da música popular brasileira, pode-se pegar, por exemplo, o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira e ir, com muita da calma, do A ao Z.
Quando chegar ao final, o leitor há de me desculpar pelo tempo (quase totalmente) perdido. Se o levei a outros bustos vandalizados, ruelas e praças obscuras ou simplesmente a coisa nenhuma, talvez finalmente possamos reconhecer (ou seria admitir?) o fascínio que os países europeus exercem sobre a maioria das pessoas locais que atravessam o Atlântico em busca de uma história pública com mais de quinze ou vinte anos de existência. Minha derradeira hipótese é de que não precisamos mesmo de nada disso e, num velho violão mal encordado e num assobio sem partitura, alguém estará compondo a continuação dessa obra inacabada chamada música popular brasileira.
Lúcio Carvalho
Editor da revista digital Inclusive. Lançou em 2015 os livros Inclusão em pauta e A aposta (contos).
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