“Gado Novo” deve chegar às telas
Colecionando elogios, o romance de estreia de Guille Thomazi está sendo roteirizado.
Assim que Gado Novo (7 Letras, 2013), romance de estreia de Guille Thomazi, chegou às minhas mãos, pensei: um livro pequeno, bom de se ler em uma hora, antes de dormir! Assim, uns dias depois, fui me deitar um pouco mais cedo, preparei os travesseiros e me ajeitei para atacar o livro, esperando matá-lo de uma só vez e, na sequência, fugir para os braços de Morfeu. Deu tudo quase certo, menos dormir depois. O sono não viria tão facilmente depois da devastadora história contida nas 66 páginas de Gado Novo.
Apesar de curto, o romance não é fácil de ler; exige concentração: a história da morte de uma garotinha, Isabel, é contada a cinco vozes por pessoas que tinham alguma ligação com ela. Essas vozes soam, por vezes, literárias demais – e esse é o único problema que vejo no romance. O tom de desalento e desesperança, aliado ao ambiente árido do campo, fazem Gado Novo soar como um tiro em nosso último resquício de fé no ser humano. Daí a minha insônia ao final.
Enviei um e-mail ao autor, começamos um papo, e eis que fico sabendo que Gado Novo deve ser adaptado para o cinema. Aproveitei essa informação e o contato com Guille para enviar-lhe algumas perguntas a respeito do romance e da adaptação – além do novo livro que virá. As respostas, abaixo, talvez apontem que ele tem tomado muito sol enquanto pesca e bebe Brahmas num bote no rio Curisevo, afluente do Xingu – conforme mostra a foto acima.
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Amálgama: Como nasceu Gado Novo? Ele já nasceu como acabou ficando, com a estrutura fragmentada?
Guille Thomazi: Este livro nasceu das podas de um romance maior. Uma obra de fôlego que escrevi a mão em cadernos de folhas rasgadas e sujas de sangue, suor e barro ao longo de uma década, em minhas errâncias pelo Brasil central e profundo. Carregava na mochila as páginas manchadas de café, esterco e cachaça. Que tantas vezes foram submergidas em rio ou tomadas de chuva e postas a secar ao sol. Ou seja, Gado Novo são os ramos desprezados deste esteio da literatura que me foi tomado quando escapava de garimpeiros na mata amazônica do Pará, e acabei capturado por índios antropófagos. Enquanto me marinavam aproveitei para fugir. Corri até o rio e me lancei. Uma chuva de flechas mergulhou comigo. Uma delas me espetou as costas. Quebrei para conseguir nadar. O sangue atraía as piranhas, o tempero as repelia. Nadei muito até começarem a abocanhar minha carne para testar a diluição do tempero. Saí do rio e vivi na floresta por algumas semanas igual a um macaco. Comendo brotos, ovos de pássaros e insetos. Imaginando que um dia retornaria em busca da minha mochila. Por sorte, antes da minha ida ao Pará eu havia deixado em uma cabana as folhas de poda, em algum lugar poeirento ao sul de Paranatinga. Editei os restos daquele material e incomodei minha querida agente que colocou os originais na 7 Letras.
Não temos tido muitos romances nesse ambiente rural, ainda mais de jovens autores. Na sua opinião, sair do ambiente cosmopolita deve ser uma opção para o escritor?
Falando sério: penso que não, mas o que sei eu? Tenho apenas 28 anos. Passei os primeiros dez babando e grunhindo, a segunda década aprendendo a limpar o traseiro, e só agora estou desentupindo os ouvidos. Esses anos de formação, contudo, me renderam um monte de experiências intensas, e com elas aprendi. Passei 70% da vida em cidades. Uns 20% destes em cidades grandes, morei em metrópole até. Mas entrelaçado com a ação concreta da natureza, ao longo do meu desenvolvimento moral, como uma revelação paulatina e tácita, foi que percebi a vida. Nos rincões do coração do país identifiquei um paralelo entre a sina do gado e de muitas mulheres oprimidas pela falta de arbítrio sobre os próprios caminhos. No livro está exposta esta alegoria de maneira brutal, e bastante real e comum, na qual uma menina não dispõe sequer do próprio corpo, usufruto do padrasto com a conivência da mãe – que a ele se submete física e psicologicamente. Enredada ela mesma em uma vida sem perspectiva. Por um desenrolar extremo o abuso leva a outra tragédia, a morte acidental da garota. Ela própria uma de muitas crianças que crescem sem opções, forçadas a sujeições. Tal qual o gado, a mercê dos planos e dos vícios dos homens.
Gado Novo agora caminha para as telas. Como isso se deu? E como está sendo o processo de transformar o livro em filme?
O livro circulou muito por fora da mainstream, é claro, contudo foi capaz de despertar interesse entre meus dez ou doze leitores. Escreveram a mim que Gado Novo é um livro profundamente honesto. Suponho que aí reside sua a maior qualidade. Produtores de cinema entraram em contato demonstrando interesse. Conversamos por alguns meses até que viajei para o Rio em dezembro para negociarmos o contrato. O livro já foi vertido a escaleta, o que é um trabalho imenso. Já se desenha o projeto de produção, e a equipe de roteiro está se formando – apesar de convidado, declinei o convite. Pela saúde do filme (e da equipe) é claro.
E depois de Gado Novo, o que podemos esperar do Guille Thomazi?
Esperem pelo pior, prometo não decepcionar. Mas tenham paciência. Trabalho sem pressa. Sou meticuloso e reescrevo muito. Até o fim do ano terminarei a revisão de um romance que escrevi. Paralelamente escrevo outro. E atente-se que minha dedicação à literatura é marginal às demandas imperativas do meu dia a dia. Meu tempo dedicado à escrita ultimamente restringe-se a alguns finais de semana. Talvez eu precise me isolar em algum canto poeirento do país para avançar com volume em minhas ideias literárias. Ao mesmo tempo, quando penso nisso sinto algo lancinar uma ferida mal cicatrizada. A ponta da flecha ainda migra dentro do meu peito, perto demais do coração para ser extirpada, sempre me lembrando de que um dia ainda tenho que voltar ao Pará e reclamar minha mochila com os originais que, quando publicados, erodirão o painel literário deste país. Reitero, esperem pelo pior.