Como um curso de "saúde quântica" foi parar na UNIFESP, uma das melhores universidades do Brasil?
Por vários motivos, pseudociência não deve ser acolhida em universidades prestigiosas. Na verdade não deveria entrar em instituição alguma que se pretenda séria. Depois do evento sobre Saúde Quântica, fiquei muito curioso em relação a que significado os proponentes dão ao tema. Trabalho com Física Quântica há 30 anos e não consigo entender o que isso pode ter a ver com saúde.
Encontrei no YouTube uma aula dada pelo engenheiro Wallace Liimaa num curso de extensão da UNIFESP. O professor Liimaa é provavelmente a maior referência em “saúde quântica” no Brasil. No entanto, mesmo tendo prestado bastante atenção na aula toda (requer tempo e uma boa dose de paciência), não é possível saber o que significa saúde quântica. O que aprendi é que o professor Liimaa tem um entendimento bastante limitado e confuso da Física Quântica. A aula inclui um amontoado de conceitos errados, equivocados ou fora de contexto, apesar de fazer referência a cientistas historicamente importantes e usar termos corretos. Trata-se de pseudociência na sua forma mais pura: um monte de baboseiras ditas com um linguajar sofisticado que parece científico, vagando entre agricultura orgânica, autoajuda, new age e intelligent design. Quase nada de Mecânica Quântica. O que realmente estranha é como isso foi parar num curso de extensão de uma das melhores universidades do Brasil.
Para que você não precise assistir a aula toda, vou apontar algumas das passagens mais bizarras.
Perto de 6:20 – “Temos hoje, com o auxílio da Física Moderna, [evidências] de que o universo também se comporta como um ser vivo e que nossa mente é o veículo dessa comunicação com o universo”. Isso não é uma consequência de Física Moderna. Esse padrão vai se repetir ao longo da aula: afirmações pseudocientíficas atribuídas a conceitos da Física Quântica.
Perto de 16:00 – “O que isso [a Física Quântica] tem a ver com saúde? O universo na sua linguagem energética e vibracional, aí vamos compreender que uma inteligência regeu essa orquestra sinfônica universal por bilhões de anos”. Isso é uma versão não-religiosa de intelligent design, mas não tem nada a ver com Física Quântica. Aqui ele mostra que, além de não entender a Física Quântica, não entende o que é a Teoria da Evolução. E me convenceu definitivamente que intelligent design não precisa obrigatoriamente ser baseado em visões religiosas, apesar de frequentemente o ser. Aprendi alguma coisa.
Perto de 19:00 – “Do ponto de vista quântico e relativístico nós vivemos em um universo que é uma melodia, e nosso corpo também é uma melodia complexa. De um ponto de vista energético e vibracional nós estamos aqui para ser felizes”. Não se sabe como a Mecânica Quântica e a Relatividade possam implicar em melodia ou levar à felicidade, exceto pelo prazer que temos quando conseguimos achar a solução para algum problema complexo.
Perto de 21:00 – “A Física Moderna está nos apontando um caminho de olhar para o ser humano em todas as suas dimensões”. Isso não significa absolutamente nada e não é uma consequência da Física Moderna.
De 22:00 a 30:00 – Mais argumentos de intelligent design.
30:00 – “Do ponto de vista quântico relativístico, uma doença é uma oportunidade”. Não consigo imaginar em que livros o professor aprendeu Mecânica Quântica ou Relatividade, mas nos que eu conheço não há ligações entre esses assuntos, doenças e oportunidades.
32:40 – Ele tenta falar de Emaranhamento Quântico, e ligar isso a dor (!?)
35:50 – “O mundo quântico diz: toda ação volta para si própria”. Nos bons livros de Física Quântica não há nenhuma afirmação desse tipo.
40:30 – “Do ponto de vista quântico, a realidade é a nossa percepção da realidade. (…) Mude suas estruturas de crença e a realidade muda”. Isso é uma das crenças new age mais difundidas, e não tem suporte algum na Mecânica Quântica. A realidade não depende de nossas crenças (ainda bem).
43:15 – “Essa é a perspectiva quântica de saúde: estimular cada um a ser um cientista.” Cada vez entendo menos.
1:01:30 – “Niels Bohr mostrou que, quando um elétron salta de um nível para outro, ele desaparece aqui e aparece aqui, mas não é possível encontrá-lo entre as órbitas. Onde ele foi parar? Esse é um dos paradoxos da Física Moderna. O elétron não está aqui. Ele foi para outra dimensão.” Paradoxo para ele que não entende o básico de Física Atômica. Um bom aluno de graduação em Física sabe o que acontece com o elétron durante uma transição. Basta calcular a evolução da função de onda ao interagir com o dipolo elétrico oscilante para entender que ele não vai para outra dimensão. Tem até uma animação excelente em Java que mostra onde está o elétron durante a transição. Não há paradoxo algum. Mas para compreender isso é preciso conhecer um pouco mais do que Mecânica Quântica de almanaque.
1:02:50 – “O salto quântico é uma mudança súbita de percepção, assim como as curas quânticas, milagrosas.” Então tá.
1:04:45 – “Temos uma impressão digital e também temos uma [impressão digital] energética e vibracional.” Será que isso é a tal saúde quântica?
1:08:25 – “O modelo quântico de saúde é uma medicina integral, entre corpo e espírito”. Não era…
1:13:00 – “A perspectiva quântica da saúde muda o cenário: ela é saúde, não doença.” Cada vez entendo menos.
1:13:30 – “Em Recife tem um plano de saúde interessado num hospital quântico”. Essa é das melhores. Um plano de saúde quântico!
1:13:50 – “O que é um hospital quântico?” Infelizmente, quando o Prof. Liimaa ia responder sua própria pergunta alguém o interrompeu. Ficaremos sem saber.
1:17:20 – “Os físicos chamam: é o colapso da função de onda – você tem medo de ousar, de fazer uma coisa diferente”. Não é possível entender o que ousadia tem a ver com colapso da função de onda.
1:20:00 – “A UNIFESP é uma das melhores universidades do país.” Precisei esperar 1:20h para ouvir uma coisa que faz algum sentido.
Não tenho ideia de como o Prof. Liimaa conseguiu infiltrar sua aula num curso de extensão numa das melhores universidades do país. Só espero que alguém na UNIFESP, preocupado com a qualidade científica de sua instituição, um dia convença os responsáveis de que uma universidade séria não deve oferecer aulas de pseudociência.
Leandro Tessler
Físico (UFRGS) Ph.D. (Universidade de Tel Aviv), Professor Associado do Instituto de Física Gleb Wataghin da Unicamp.
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