A farsa da estabilidade institucional

Quem viabiliza o governo Dilma hoje são a imprensa e líderes da oposição como Serra e FHC.

fhc-dilma

Palavra mais temida entre os governantes, o impeachment – ao contrário do que costuma acontecer – ultrapassou as barreiras dos murmurinhos populares e invadiu o mundo político depois do 15 de março. Desde então, a oposição partidária se dividiu a respeito do tema. O ex-presidente Fernando Henrique tem sido uma voz contrária ao impedimento. Seu argumento mais incisivo é que um processo de afastamento de presidente é traumático e gera instabilidade institucional.

Entretanto, diferente do que afirmam os temerosos, os acovardados ou os amigos complacentes da esquerda, a tese da estabilidade das instituições é duplamente infundada. Primeiro, porque a democracia liberal (no sentido clássico) em si depende de certa instabilidade, uma espécie de suspensão e cristalização das tensões que não leve à ruptura. Como observou Reinhart Koselleck, a crítica moderna instaura – e depende – de uma crise perene sem resolução.

A Europa foi tomada no século XVI e XVII por guerras civis religiosas entre protestantes e católicos. Depois da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), que reuniu boa parte do velho continente no conflito, foi assinada uma série de tratados conhecidos como Paz de Westfália, que, ao reconhecer a liberdade religiosa a partir da soberania nacional, deslocou o substrato dos conflitos da convicção religiosa para as razões de estado.

Hobbes dizia que o estado natural dos homens é a guerra. Guerra por espaço, recursos, símbolos e poder. E a sua causa seria a consciência moral. A convicção moral, que advém da religião, leva ao conflito pela não aceitação dos outros grupos. Por isto, as convicções privadas não deveriam ter repercussões políticas. Para garantir a paz e a segurança, seria preciso um Estado Leviatã, onde, a partir de um contrato social, o governo seria absoluto, evitando a guerra civil. A moral deixa de ter repercussões políticas, pois o comum vira o soberano. Na figura forte do poder real organiza-se o Estado nacional, submetendo todos os súditos ao seu arbítrio. Nasce o Estado absolutista. Ele assegura, protege e prolonga a vida dos homens, mas não chega a interferir na vida privada dos súditos. A partir desta clivagem o homem se parte em dois, uma metade privada e a outra pública.

Todavia, quando o Estado absolutista atua no lugar da essência religiosa, ele retira razão que mantinha a ordem fechada à influência e autonomia dos súditos. O arrefecer da religiosidade é fatal para o Estado absolutista, pois seu sustentáculo dependia da tradição e dos vínculos da antiga aristocracia. Logo, no século XVIII, os homens desejarão substituir o arbítrio do rei pelo império da lei. Libertar-se das amarras da substância religiosa ou moral foi o primeiro passo, o segundo será se libertar do arbítrio do poder real, em busca da autonomia diante dos céus e da terra, de Deus e dos homens, esta grande síntese do projeto moderno.

O problema é que agora a única convicção válida é a do arbítrio do rei. Desta feita, era preciso fazer a moral voltar à política, mas de maneira secular. A convicção precisava-se transformar em crítica política, onde se averiguaria o desejo dos cidadãos, cumprindo-se os das maiorias desde que se respeitassem os direitos das minorias. A negação do indivíduo e sua moral no privado, sem participação nas coisas públicas, fomenta o liberalismo e o Iluminismo. Eles debruçam-se sobre o Leviatã, desejosos de quebrar o que ainda lhe resta de aristocrático. Daí que o pressuposto da crítica liberal e iluminista é a separação entre um reino da moral e um reino da política no absolutismo, que tinha unido os valores comuns a partir do poder real para dirimir a rivalidade entre as convicções.

No final do século XVII, John Locke dividiu as leis em três: a lei divina, as leis do Estado, e as leis morais. A lei divina é natural e inata, as leis do Estado são as terrenas (escritas ou jurisprudenciais), e as leis morais são a opinião pública. A novidade de Locke consiste na separação entre as leis morais e as divinas. Neste sentido, ele defende que as leis morais (a volta da convicção pessoal separada do religioso) inspirem as leis de um Estado justo. Assim, ele age no foro interior da consciência humana, que tinha sido subordinada por Hobbes à política do Estado. Para Locke, os homens deveriam ser protagonistas das ações públicas, e não só o soberano. Ou seja, a moral não deve se limitar ao eu interior, mas deve constituir o próprio Estado.

Mas ficaria uma questão: quem decide? A instância moral dos cidadãos ou a política do Estado? Os dois em conjunto. A lei moral não pode exercer poder, mas sim influência política indireta. É nessa reintegração de uma moral laica civil ao domínio da política que nasce a ideia moderna de democracia.

Cada pessoa torna-se então juiz que, em virtude do esclarecimento alcançado, processa todas as questões. O dualismo entre o reino da moral e o reino da política permitiu abrir um horizonte crítico (ser a favor ou contra), primeiramente contra as religiões, e gradativamente contra o Estado. O absolutismo condiciona a gênese do Iluminismo, possibilitando o desdobramento da modernidade a partir das revoluções modernas que procuram resolver esse impasse político e de sua utopia baseada no progresso. Não se deve mais prestar obediência ao poder que concede proteção, mas ao poder soberano que se submete a moral. A moral laica e imanente se autointitula detentora do direito de juiz supremo da política. A crítica dos iluministas e liberais do século XVIII estabelece o tribunal da moral que vencerá o despotismo. A moral laica civil era o império da lei e da formalidade institucional que garantiria segurança e liberdade para os homens.

Portanto, a ideia central da democracia liberal é um poder difuso, a partir das tensões entre os vários grupos que exercem a crítica, cristalizando-se através de um sistema de checks and balances, com divisão entre os poderes e a promulgação de uma Constituição. A representatividade da sociedade legítima a moral laica civil, que só pode se tornar lei a partir do embate entra as várias críticas. Assim, o que garante o reconhecimento da vida em comum na democracia liberal é um poder difuso que gera um equilíbrio tenso na sociedade plural. O que dá unidade a ela não é o poder real ou a religião, mas a própria fundação do poder na crítica e o reconhecimento deste a partir do respeito dessas tensões. Por definição, não pode existir a crítica que sustenta o processo democrático sem certa crise em estado de suspensão. É da própria essência da democracia liberal a ameaça dessas tensões se saturarem e possibilitarem as rupturas institucionais. Portanto, as instituições só podem ser democráticas sem plena estabilidade e a partir desse risco.

Neste sentido, por não tensionarem com o PT, FHC e setores de seu partido são, na verdade, co-responsáveis pelas ameaças às liberdades civis no Brasil. Se no auge do mensalão, em 2005, não tivessem sido lenientes com o petismo, não haveria petrolão, pois o esquema teria sido abortado ou desmontado naquele mesmo instante. É inacreditável que, mesmo com os diversos alertas do TCU sobre superfaturamento nas estatais no segundo governo Lula, ninguém da oposição tenha ido ao fundo, exercendo a crítica pública que sustenta a normalidade democrática.

Não há no Brasil uma ameaça da saturação das tensões que leve à quebra institucional, mas, pelo contrário, um assalto ao Estado ocasionado pela hegemonia triunfante dos donos do poder, resultado da ausência de polarizações e tensões por mais de dez anos. O PSDB é um partido de centro-esquerda, com algumas divergências pontuais com o petismo, mas com outras tantas concordâncias. Mesmo sendo alvejados pelos petistas, os líderes tucanos sempre concederam (principalmente antes de 2002) um sentimento paternal aos seus adversários, vistos como “boas pessoas mesmo que ainda um pouco intransigentes”. Segundo o site Antagonista, em recente palestra, FHC demonstrou sua visão sobre as recentes disputas no país: se a coisa esquentar, é preciso fazer uma reunião secreta entre os “cardeais” do país para resolver o impasse. Esta visão “por cima” da democracia, tradicional na social-democracia desde a metade do século XX, revela a ausência de um polo de tensão verdadeira com o petismo. Na falta de representação política, o povo nas ruas está se encarregando de criá-la.

Em segundo lugar, a tese é infundada porque está provado que o PT não tem mais sequer o monopólio da minoria barulhenta. A grande força do partido hoje é a burocracia, com suas centenas de cargos. Tirando-lhe isto, perde seu chão. A casta intelectual fiel ao petismo chamará folcloricamente o impeachment de golpe, como fará com qualquer derrota futura, identificando-a como “golpe midiático”, da mesma maneira que atribui sua derrota em 89. Isso não é motivo para não se aliar à maioria da população favorável ao impedimento (quase dois terços da população segundo o último Datafolha).

Amplo apoio popular já há para o impeachment. No Congresso, o PMDB tenta ampliar seu controle sobre o governo, numa espécie de “renúncia sem perda total” que pode dar novo fôlego ao PT. Neste sentido, o governo do PT se vê diante de um dilema: ou aceita dividir o governo ou amplia as tensões com o PMDB e perde definitivamente o Parlamento. Essa é a grande questão política hoje. As razões jurídicas por crime de responsabilidade estão mais claras diante das “pedaladas fiscais”. Não há motivos para temer um processo de impeachment amparado no apoio popular e com razões jurídicas.

Quem viabiliza o governo Dilma hoje são a imprensa e líderes da oposição como Serra e FHC. A única estabilidade institucional que estes pretendem é o da consagração da mentira. O que ameaça saturar as tensões na sociedade é a continuação, e não punição, de um governo que se apropria do Estado em prol de um projeto de poder (e não de governo), seja no uso indevido do Estado na campanha ou no maior esquema de compra de apoios da história. Ao contrário, o que pode assegurar o bom funcionamento de nossas instituições é a garantia de que as suas tensões levarão à correta punição ao mandatário da representação popular.

Share Button