Escuridão interior

"A Forma da Sombra" é uma história lúgubre e de indiscutível valor artístico.


"A forma da sombra", de Fernando de Abreu Barreto (Caligo Editora, 2014, 116 páginas)

“A forma da sombra”, de Fernando de Abreu Barreto (Caligo Editora, 2014, 116 páginas)

Apesar de toda a fragilidade do gênero, pouco explorado no Brasil levando em consideração o destaque dado a tal escrita em outros países, os últimos anos têm sido dourados para o thriller e a literatura policial brasileira. Dando uma nova roupagem a este estilo, considerado por muitos marginal, ao lado de talentos como Luiz Biajoni (A comédia mundana) e Raphael Montes (Suicidas e Dias perfeitos), Fernando de Abreu Barreto bate seu cartão de entrada com um incrível romance de estreia.

A forma da sombra é uma envolvente e criativa novela sobre um funcionário da Companhia Metroviária do Rio de Janeiro, pobre criatura fadada à solidão e à perene incompreensão humana. Habituado à escuridão dos subterrâneos (do trabalho e de seu próprio ser), evita a presença da luz a qualquer preço, pintando as janelas de seu apartamento com tinta preta, saindo apenas à noite, buscando refúgio nos túneis do metrô, metáfora de sua própria identidade labiríntica e obscura, a fim de realizar seus mais íntimos intentos.

A narrativa em primeira pessoa ajuda na imersão da personagem, por vezes atormentada, por vezes conformada (até mesmo orgulhosa) com sua condição, a certeza de que é algo sobrenatural, uma nova espécie, ser além do bem e do mal, da justiça do homem. Faz-se presente, no estilo do autor estreante, uma notável literariedade. Percebe-se a escolha das palavras, o cuidado com a forma, muito além da costumeira imagética cinematográfica dos livros do gênero; além de seu valor como obra policial, há, ainda, em A forma da sombra, indiscutível valor artístico.

As elucubrações filosóficas da personagem, seus regressos à infância problemática, o ambiente sujo, sombrio, caótico, de sua incerta existência, dão ao livro uma atmosfera incômoda, enevoada, abafada, de toca. A escolha do metrô como palco das atrocidades cometidas, ainda, foi sábia e bastante contemplativa. Existe algo de grotesco e claustrofóbico na forma como ele se movimenta, em seu serpentear de cobra, rastejando de barriga, “sobre o teu ventre andarás”, pois há um pouco de inferno na escuridão infinita de suas galerias, em que coisas se escondem, ocultas da luz do sol.

Fernando de Abreu Barreto acertou em suas escolhas. Ainda que alguns elementos clichês, como não poderia deixar de acontecer, apareçam aqui e ali na narrativa, a originalidade, pontuada pelo estilo, fizeram deste livro policial um dos melhores dos últimos tempos, apresentando-nos, quem sabe, um novo representante do gênero no país.

Amálgama




Bruna Gonçalves

Formada em Letras pela PUC-Campinas, revisora, tradutora e "semiescritora" nas horas vagas.


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