O grande perigo de punições muito severas por parte de um poder centralizado é que não é difícil que isso se transforme em arbitrariedade e autoritarismo.
A possibilidade da aprovação da lei que reduz a maioridade penal no Brasil levantou várias discussões nos últimos dias. Diante de um emaranhado de dados, argumentos, imagens e vídeos pró e contra, o debate ficou polarizado. Alguns são radicalmente contra, não admitem a redução da maioridade penal em hipótese alguma e a veem como um retrocesso. Outros são entusiastas da medida e a consideram um fortalecimento da segurança pública no país.
Em face de posturas tão dicotômicas e extremadas, vindas dos grupos que conseguem se mobilizar politicamente em relação ao assunto, é quase impossível não aderir integralmente a uma destas duas posturas. No entanto, pouco se tem questionado sobre uma outra possibilidade de posicionamento, não um “meio-termo”, mas algo que vá além da essência dos argumentos propostos por ambos os lados.
Basicamente, a postura contrária à redução se baseia no fato de que o crime é algo “social” ou, pelo menos, que a dimensão sistêmica das relações sociais e econômicas tem mais peso na iniciação de violência ou no descumprimento à lei do que as possibilidades de decisão e consciência individual. Para esta visão, a ação criminosa de um indivíduo é mais influenciada pelo conjunto de relações de toda a sociedade do que por uma decisão interna em agir de forma violenta ou ilegal.
Além disso, tal posicionamento costuma ser contrário a quase todas as formas de punição, acreditando que se tratam de “vinganças” e que não “reabilitam” ninguém. Conforme esta linha de pensamento, as “causas” dos crimes é que devem ser combatidas, e o mais fundamental de todos os motivos para atos criminosos seria a carência de educação.
Diante do exposto, nos cabe questionar dois aspectos fundamentais da argumentação dos que se posicionam contra a redução da maioridade penal. Primeiramente, como é possível definir absolutamente, com pretensões “científicas”, as “causas” de atos criminosos? Geralmente, para corroborar a posição, recorrem a estatísticas. Porém, números e dados pouco ou nada dizem sobre relações de causalidade, apenas revelam eventos históricos e podem contribuir para a compreensão das dinâmicas sociais, mas não estabelecem relações causais necessárias e inexoráveis.
Outro aspecto é a questão da “educação”. O que quer dizer educar um indivíduo? Quem deve ter essa responsabilidade? Em linhas gerais, os opositores da redução da maioridade penal defendem uma educação “emancipatória”, “libertadora”, que faça com que os indivíduos tenham “consciência” da sociedade em que vivem e de suas relações.
Estas duas linhas de raciocínio são altamente influenciadas, entre outros, pelo iluminismo francês, que tem como expoente principal o filósofo Jean-Jacques Rousseau. Não nos cabe aqui entrar nos meandros da obra de um pensador tão importante e influente para a contemporaneidade, mas, em linhas gerais, foi a partir de sua filosofia que se consolidou a ideia do ser humano como “vítima da sociedade” e da “educação”, das “luzes do conhecimento” como única possibilidade de redenção e, consequentemente, de sua universalização como apogeu da harmonia social.
O problema é que, querendo ou não, o conhecimento humano é limitado. É impossível conhecer em detalhes as reais motivações de cada ação humana. Mais impensável ainda é definir uma “regra geral” de causas e motivos para um determinado tipo de ação. É igualmente impossível saber quais efeitos a “educação” teria sobre os indivíduos, bem como é muito questionável definir qual tipo de conhecimento seria “libertador” e qual não seria. Dessa forma, a pretensão de conhecimento, ou seja, a premissa de que é possível saber com muita ou com toda a certeza o que determina as ações humanas é o principal ponto fraco do raciocínio daqueles que são contrários à redução da maioridade penal.
Do outro lado, entre os defensores da redução, vemos uma crença extremada em punições e pouco questionamento sobre o sistema legislativo, sobre a aplicação e execução de penas e, principalmente, a ideia de que “leis”, ou seja, decisões estatais centralizadas sobre o que os indivíduos podem ou não fazer, são capazes de “mudar” ou “proteger” a sociedade.
Entre os defensores de tal medida, grande parte se posiciona radicalmente contra a legalização ou liberalização de qualquer tipo de drogas e pouco se questionam sobre os chamados “crimes sem vítimas”, isto é, ações que são consideradas criminosas pela “lei” e pelo Estado, mas que não se tratam de iniciação de violência.
Outra postura corriqueira entre os defensores da redução da maioridade penal é o clichê “bandido bom é bandido morto”. Também são críticos ferrenhos dos direitos humanos, argumentando que estes só servem para “proteger bandidos” e pouco se questionam sobre a situação do sistema carcerário.
O problema de tal visão, reacionária e não conservadora, é a idealização do Estado, de sua justiça e de sua polícia como “autoridades” praticamente inquestionáveis. Preconizam uma sociedade policialesca, muitas vezes recorrendo a um passado idealizado (e inexistente) em que as crianças podiam brincar na rua sem grandes preocupações e onde as “pessoas de bem” estariam protegidas por autoridades implacáveis na aplicação da lei.
Sabemos que o crime sempre existiu, mas que as concepções sobre ele, bem como as formas de punição, variaram muito ao longo da história. Alguns atos, porém, de violência mais explícita, como assassinatos, roubos, estupros e sequestros sempre foram, de forma geral, rechaçados pela maioria das sociedades humanas.
Mas não raras foram as ocasiões em que atos não violentos foram “criminalizados” pela sociedade e, principalmente, pelos Estados. O grande perigo de existir punições muito severas por parte de um poder centralizado é que não é difícil que isso se transforme em arbitrariedade e autoritarismo. Aliás, a ideia de direitos humanos e, anteriormente, princípios básicos do direito como a presunção de inocência, amplo direito de defesa, necessidade de provas etc., surgiram justamente de reações contra sistemas jurídicos que promoveram verdadeiros atentados contra os indivíduos e se ampararam no “cumprimento da lei”, na “segurança nacional” e na necessidade de “proteger”.
Enfim, da mesma forma que não é possível saber e prevenir de forma completa as “causas” dos crimes, também é utópico acreditar na “guerra ao crime” ou em “punições exemplares”. Inevitavelmente, qualquer decisão penderá para um dos lados. Só podemos esperar que a tentativa de entender o crime como fenômeno social não se transforme em omissão e que a ânsia por proteção não se torne um cerceamento exagerados das liberdades.
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Ane SCL
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Caio Vioto
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Ezequiel Augusto
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Caio Vioto
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Vafanculo