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Sustenta-se a ideia de que a esquerda é formada pelo bloco dos bons de coração

O que se esconde por trás da pretensa exclusividade moral e da preocupação social a que a “esquerda” arroga em caráter supostamente exclusivo é uma impressionante incapacidade de se reinventar e, abrindo os olhos, deparar-se com o dado elementar de que o mundo do capital mudou, e mudou profunda, enorme e estruturalmente.

A ideia de direitos humanos (essa consequência iluminista tão contestada há décadas atrás pelo braço armado da esquerda europeia) é uma clara invenção liberal, assim como o são as propostas de distribuição direta de renda por meio de programas sociais que emitem cheques mensais repassados sem intermediários ou tributação, teses defendidas há décadas em textos oficiais do FMI e BIRD e tão severamente contestadas pelos partidos de esquerda como esmolas assistenciais que teriam, segundo o próprio Marx, o papel de arrefecer o ódio de classes atenuando inadequadamente o ímpeto revolucionário que seria sempre o de “quebra” e nunca o da “conservação”. Sobre isso é emblemático o repúdio dos partidos “operários” aos programas sociais de distribuição direta de renda cristalizados no epíteto de Bolsa Esmola, dado por Lula ao programa Bolsa Escola que, reciclado, gerou o neoliberalíssimo programa atualmente chamado de Bolsa Família.

De tal modo, convenientemente esquecidos de toda a preocupação coletiva dos liberais (expressa na construção de leis de direitos humanos pelo mundo a fora, no protagonismo dos movimentos abolicionistas nos mais diversos países instaurando relações de trabalho onde havia antes a vulgar servidão, na criação de políticas de repasses assistenciais, etc.) sustenta-se a ideia de que a esquerda é formada pelo bloco dos bons de coração que amam as massas e que o movimento de “conservação” é sempre sinônimo de atraso e ódio de classes.

Não são poucos os artigos, conferências ou debates onde a crítica ao liberalismo consiste unicamente em adjetivá-lo de conservador, como se tal adjetivo fosse suficiente para demonstrar sua inadequação. Não são poucas as produções de uma crítica especializada que não emite argumentos plausíveis, mas categorizações por meio de um cardápio prévio que contém os mesmos adjetivos tão amplamente utilizados na campanha recém-finda: elite branca, direita golpista, fascista, conservador, reacionário, dentre outros espasmos subjetivos que não se constituem em um posicionamento político, mas numa peça de ataque à reputação do interlocutor, supondo nele uma vontade viciada ou motivos de ódio às massas muito bem escondidos na polidez, na lógica e no discurso bem fundamentado: esses horrores pequeno-burqueses que inviabilizam os úteis recursos retóricos de ad hominem e do homem de palha.

A criação de tal espantalho, no entanto, não é obra casual e tem uma razão prática muito específica: chancelar a cegueira dos militantes que, ao se imaginarem lutando por um mundo melhor contra opressores invisíveis, se desobrigam de prestar contas da viabilidade dos meios que empregam para tão nobre tarefa.

Não é um dado menor o de que acadêmicos como Marcos Nobre, Vladmir Safatle, André Singer, Marilena Chauí, dentre outros, que nominalmente se dizem “de esquerda”, propaguem em seus debates que a chamada esquerda hoje não se constitui num conjunto de teses políticas, mas numa postura moral abstrata de inclusão; que prescinde das ferramentas teóricas marxistas; e que, portanto, encontra-se isenta da vocação totalitária que esmagou a antiga URSS (ensaiando com isso a criação de uma diferença artificial entre a esquerda atual e os horrores do leste europeu) – mas que, a portas fechadas, continuem pensando por meio de categorias tão ancestrais como meios de produção, classe operária, campesinato, luta de classes, dentre outras múmias conceituais a que se tenta, a força de artimanhas elásticas, insuflar algum sopro de sobrevida.

Felizmente, após o advento dos celulares praticamente não existem mais portas fechadas, e pude conferir algumas morosas horas de conferências e debates destes e de outros acadêmicos sobre temas como “os sentidos do lulismo”, “práticas ideológicas”, “o avanço conservador”, “movimentos sociais” e temas congêneres.

Vendo tais debates, onde é claramente cobrada ortodoxia conceitual às ideias fundamentais marxistas, mormente as onze teses sobre Feuerbach (de onde nasce o essencial da agenda da esquerda atual), O 18 do Brumário e demais evangelhos marxistas, não há como não sentir-se enganado pelo que publicitariamente se vende como uma esquerda que deixou para trás velhos livros empoeirados, como todos ouvimos de tantos eleitores ocasionalmente vermelhos durante o último pleito.

Voltando às conferências, em que medida o conceito de meios de produção e sua coletivização (tal como Marx a pensou no século XIX) é aplicável num mundo onde a posse de um celular e acesso à internet permite a qualquer pessoa produzir e empreender? Em que medida o trabalho é a medida do valor em um mercado de capitais? Em que século estão essas pessoas que falam a sério em campesinato, subproletariado, mais valia, expropriação e coletivização de meios de produção, controle social da mídia, regulamentação da vida privada, burguesia? Meu deus, burguesia? Haverá categoria mais anacrônica e inespecífica do que burguesia? Não sentem algum choque ao tentar correlacionar tais ideias pré-históricas com o mundo tal qual se vive?

Tais reflexões não podem seguir adiante sem um considerável divórcio com o mundo real e com o profundo desconhecimento de como são produzidos, inclusive, os aparatos usados durante a execução das próprias conferências: prensa para os textos, microfones, computadores, maquinários que compõem a internet, todas prendas criadas por uma sociedade de mercado orientada para o lucro e em relação à qual tal discurso não oferece qualquer alternativa razoável.

Não é demais recordar que a Coreia do Norte, Cuba, Camboja, Venezuela, bem como qualquer país cujo funcionamento está coordenado mais à esquerda, depara-se com sérios problemas de produção. O próprio Brasil sofre hoje com uma triste realidade matemática: a recessão que nos atinge em cheio após 12 anos de gastos irresponsáveis e de um aprofundamento crescente da dívida pública. Outro dado tão elementar quanto o fato de que não vivemos mais na Europa rural de fábricas a vapor do tempo de Marx é o dado de que “não há almoço grátis”: alguém necessariamente vai pagar a conta e o Estado não possui um centavo além do que aquele que arrecada dos contribuintes, de modo que a manutenção de uma massa de pessoas improdutivas com o dinheiro de uma minoria produtora não é sustentável a longo prazo (sobretudo após a boa maré de commodities que ajudou a maquiar a insustentabilidade dos primeiros dois mandatos do PT).

Diante dessa completa ausência de fundamentos não resta aos acadêmicos da esquerda outra coisa que não a construção de uma narrativa salvífica que torna qualquer militante um virtual amigo do bem, ao repetir em seu meio propostas morais que desconhecem em profundidade, mas, qual crianças, repetem-nas mesmo sem saber o significado.

Notem que fiz questão de chamar os autores listados (que não são únicos) de acadêmicos, e não de intelectuais ou pensadores – categorias que notadamente não ocupam dentro do cenário intelectual contemporâneo, visto que são incapazes de transvalorar-se, de criar novas ideias ou conceitos, limitando-se a tentar enxergar alguma aplicabilidade prática de ideias enxovalhadas em um mundo que, como disse o próprio Marx (não sem a qualidade estética que, aliás, era um dos dados mais comuns de seus textos), se desmancha no ar.

Muito poderia ser dito a título de demonstração de tal alienação: a própria dificuldade (honestamente assumida por Marcos nobre em recente debate) da esquerda em ouvir, incorporar argumentos e dialogar sem agressividade já seria bastante expressiva dessa ausência de fundamentos. Outro argumento plausível seria um debate que se desenvolve sempre por generalidades e nunca por dados concretos – como por exemplo falar em “a direita”, “a esquerda”, avanço conservador, os opressores, o grande Capital, “esse é o discurso da Rede Globo”, “isso reforça preconceitos históricos” e demais generalidades de efeito moral aplicáveis sem coordenação ao mundo real, mas que se prestam eficazmente para demarcar uma postura de amor ao mundo em detrimento de qualquer viabilidade econômica para a realização de um projeto que não seja pela terceirização dos custos ou de um ato de esmagamento estatal da vida privada.

Poderia também mencionar a mais famosa das onze teses sobre Feuerbach, onde Marx propõe que a transformação do mundo deve ter primazia sobre a compreensão. Entretanto escolho uma terceira via, um momento luminoso em um evento sobre uma impalpável ameaça conservadora que reuniu alguns membros do primeiro escalão em uma mesa numa conceituada instituição associada a valores de esquerda.

Durante os trabalhos de uma das mesas, alguém pediu ao palestrante que definisse algumas das categorias abstratas a que se referia, ao que o filósofo responde que desde Kant a Filosofia não se preocupa mais em definir e que atualmente, em Filosofia, os fundamentos de algo são o que menos importa. Poucas coisas poderiam ser mais brutas e ignorantes do que tal posicionamento, e a fala seguinte do palestrante me poupa de ir muito adiante na explicitação de tal absurdo: treplicado pelo seu interlocutor, o palestrante, aparentemente irritado, insiste que “ou se faz crítica ou se faz bem estar social”!

Eis, exatamente, o meu ponto. É exatamente essa recusa ao pensamento o que caracteriza a esquerda hoje. É essa esquerda que fundamenta as mentiras messiânicas que viram nosso estômago pelo avesso.

Pedro Gabriel

Psicanalista, mestre em Psicologia pela UFPE.