G. K. Chesterton e o romance

O romance, diz Chesterton, só será compreendido “quando o Tempo, o Homem e a Eternidade também o forem”.


"O Defensor, e Tipos Variados", de G. K. Chesterton. (Ecclesiae, 2015, 224 páginas)

“O Defensor e Tipos Variados”, de G. K. Chesterton. (Ecclesiae, 2015, 224 páginas)

1.

O renascimento brasileiro de G. K. Chesterton é um fenômeno que comemoro todos os dias. Novos livros chegam semestralmente ao mercado nos últimos três anos — e a Editora Ecclesiae acaba de publicar, em um único volume, a tradução de Mateus Leme para O Defensor e Tipos Variados. Além disso, Wisdom and Innocence: A Life of G. K. Chesterton, biografia escrita pelo crítico literário Joseph Pearce, está sendo traduzida.

É claro que ainda falta muito para alcançar a totalidade da obra de Chesterton — tarefa que a Ignatius Press realiza de forma extremamente profissional. Se quisermos ter uma ideia do que representa o legado desse escritor, basta pensar que, na sua Collected Works, foram necessários dez volumes, do 27º ao 37º, para reunir os artigos semanais que ele publicou na The Illustrated London News.

Nos prefácios que escrevi a Considerando todas as coisas e O que há de errado com o mundo analisei algumas características do estilo de Chesterton, incluindo a incrível habilidade para criar paradoxos. No presente artigo, quero falar de sua teoria literária, especificamente da forma como ele vê o romance.

Este último lançamento da Ecclesiae permite que o leitor descubra como Chesterton entendia a literatura, pois Tipos variados reúne ensaios que dedicou a Charlotte Brontë, Alfred Tennyson, Alexander Pope, Elizabeth Barrett Browning, Walter Scott e Robert Louis Stevenson, dentre outros. No mesmo volume, em O defensor, três artigos enfocam diferentes aspectos da obra literária: “Em defesa do absurdo”, “Em defesa das novelas de um centavo” e “Em defesa dos romances policiais”.

2.

Enquanto eu lia “A posição de Sir Walter Scott”, lembrei-me do que Northrop Frye escreve, em The Secular Scripture, a respeito do autor de Ivanhoe e Rob Roy.

Frye recupera parte de sua história como leitor de Scott, desde a infância, quando se deliciou com o ciclo de Waverley, passando pelo que chama de “idade da intolerância”, até chegar à maturidade e, sob influência do amigo Richard Blackmur, libertar-se dos preconceitos da crítica e “se deixar fascinar, mais uma vez, pelas técnicas que Scott usava”.

A história de Frye é o percurso do leitor ideal: de forma paralela à leitura dos seus autores prediletos, ele acompanha o que os críticos dizem, pesa as conclusões e deixa, então, que as próprias obras falem, mais uma vez, ao seu coração, ao seu intelecto. Ele não está em busca de uma verdade definitiva, mas de um diálogo — com a literatura e a crítica literária — que permita o seu próprio amadurecimento não apenas como leitor, mas de forma integral, como homem.

A busca desse amadurecimento irrompe na ironia chestertoniana que abre o segundo parágrafo de “A posição de Sir Walter Scott”: “Diz-se que Scott foi abandonado pelos leitores modernos; se for assim, o problema poderia ser descrito com mais propriedade dizendo-se que os leitores modernos foram abandonados pela Providência.”

O que pode parecer apenas um chiste espirituoso, na verdade expõe a base do pensamento de Chesterton em relação ao romance, um gênero que, para ele, só será compreendido “quando o Tempo, o Homem e a Eternidade também o forem”.

3.

Longe de ser uma generalização, esta afirmativa de G. K. Chesterton o coloca no ângulo exatamente oposto ao das teorias formalistas e niilistas, hoje populares.

A teoria moderna inteira surge de um erro fundamental — a ideia de que o romance é de alguma forma uma brincadeira com a natureza, uma invenção, um convencionalismo, algo exterior. Nunca haverá nenhuma crítica genuína ao romance até que nos demos conta do fato de que o romance não está do lado de fora da vida, mas absolutamente em seu centro.

A mesma ideia renasce um século depois da publicação de Tipos variados, quando Tzvetan Todorov, sem se referir a Chesterton, mas fazendo críticas contundentes aos estruturalistas e a outras visões reducionistas da literatura, lembra que “o conhecimento da literatura não é um fim em si, mas uma das vias régias que conduzem à realização pessoal de cada um” (em A literatura em perigo).

Chesterton recusa a ideia de que “o romance ou a aventura” são “coisas simplesmente materiais misturadas ao emaranhado de uma trama”. Para ele, o romance é “um estado de espírito”, isto é, “não consiste em experimentar aventuras”, mas “em estar pronto para elas”.

Esse distanciamento dos aspectos formais da obra literária pode parecer incompreensível aos que foram treinados pelo estruturalismo, mas é libertador, pois permite observar a ficção em sua completude — impossível de ser dissociada da realidade — e não apenas como um construto feito exclusivamente de linguagem.

4.

Essa ideia perpassa o ensaio dedicado a Robert Louis Stevenson, em que Chesterton refuta os críticos que confundem os narradores de Stevenson com o próprio escritor e reafirma a importância da imaginação, presente, enquanto potência criadora, não só no leitor, mas no que ele chama de “alma da história”.

Para Chesterton, o eixo da ficção de Stevenson encontra-se no conceito de que “as ideias são os verdadeiros incidentes: que nossas imaginações são nossas aventuras”. Ou, no seu estilo alegre, “pensar em uma vaca com asas é essencialmente tê-la encontrado”. Assim, em Stevenson, “a história era a alma, ou melhor, o significado, da visão do corpo”.

Essa análise traz, embutida, a crítica de Chesterton ao realismo rasteiro, que acaba por diminuir a realidade para apregoar uma tese ou uma ideologia. Censura que ele constrói ao defender a eloquência de Walter Scott, característica de sua “incapacidade para desprezar qualquer” personagem: “Não escarnecia do mais revoltante canalha como o realista de hoje freqüentemente escarnece de seu próprio herói. Embora sua alma esteja em farrapos, todo homem de Scott pode falar como se fosse um rei.”

Ao censurar os realistas que sacrificam personagens e enredos para enaltecer ideias, Chesterton elabora uma crítica que serve a grande parte dos escritores brasileiros atuais:

Tome qualquer obra de ficção contemporânea e abra-a na cena em que o jovem socialista denuncia o milionário, e então compare a afetada palestra sociológica dada por aquele chato abnegado com a crescente festa de palavras com que Rob Roy se declara, ou Athelstane desafia De Bracy. Aquele antigo mar de paixão humana sobre o qual as palavras elevadas e as grandes frases são a resplandecente espuma está neste exato momento em maré baixa. Chegamos mesmo ao ponto de nos felicitarmos porque conseguimos enxergar a lama e os monstros do fundo.

Posso discordar de Chesterton quanto à necessidade do discurso altissonante, pois em nossa literatura ele quase sempre surge repleto de lugares-comuns e adjetivação pegajosa. Mas concordo que, se podemos elogiar o “delicado e fascinante discurso que se enterra cada vez mais fundo como uma toupeira” — e ele cita, como exemplo, Henry James —, então devemos estar abertos ao “discurso que se eleva cada vez mais alto como uma onda e depois quebra-se em uma arrasadora peroração”.

5.

Todas estas questões confluem, no entanto, para o que apontei acima, a ideia do romance necessariamente preso à vida. Para Chesterton, a obra literária que busca apenas uma suposta perfeição linguística ou erige a linguagem como sua protagonista é, na verdade, uma traição à literatura.

Também por esse motivo ele elogia o romance policial, um gênero considerado menor, mas que é capaz de expressar “de alguma forma a poesia da vida moderna”, não no sentido de uma exaltação ao crime, à violência ou à superficialidade que a existência adquire nos grandes centros urbanos, mas porque, “no meio de um burburinho de pedantismo e preciosismo”, o romance policial se nega a “encarar o presente como prosaico e o comum como lugar-comum”.

De fato, nada é banal para Chesterton. Todas as coisas merecem ser amadas. E ele compõe um hino de louvor à realidade:

Os homens viveram entre poderosas montanhas e florestas eternas por séculos antes de que se apercebessem de que estas eram poéticas; pode-se inferir razoavelmente que alguns de nossos descendentes poderão enxergar as chaminés com um matiz de púrpura tão rico quanto o dos picos das montanhas, e pensar que os postes de luz são tão velhos e naturais quanto as árvores. Com relação a essa percepção de uma grande cidade como algo em si mesmo selvagem e óbvio, os romances policiais certamente são sua Ilíada. Ninguém pode ter deixado de notar que nestas histórias o herói ou investigador cruza Londres com algo da solidão e liberdade de um príncipe em um conto de fadas, que durante aquela jornada incalculável o ônibus casual assume as cores primárias de um navio de fantasia. As luzes da cidade começam a brilhar como os olhos de inumeráveis duendes, já que são as guardiãs de algum segredo, talvez grotesco, que o escritor conhece e o leitor, não. Cada curva da rua é como um dedo que aponta para isso; cada fantástica linha de chaminés parece assinalar de forma fantástica e zombeteira o significado do mistério.

Para alguém que, como eu, vive em São Paulo, é impossível não recusar o idealismo de Chesterton. Um idealismo que talvez fosse aceitável se pensarmos na Londres do início do século XX. Mas ele nos embriaga com seu estilo e somos forçados a distinguir, no caos de hoje, alguma forma de beleza. Somos obrigados a ver o homem, a encontrar nosso semelhante: ele é o centro do “mistério”, pois, Chesterton está certo, o núcleo do romance policial é sempre uma questão moral — “a mais obscura e ousada das conspirações”.

De qualquer forma, Chesterton não deseja que concordemos com ele. Mas que percebamos a necessidade de uma literatura que jamais perca contato com a imperfeição, com o mundo que ele encontrou em Walter Scott: estranho, antigo, confuso — e exatamente por isso, inspirador e saudável.

Amálgama




Rodrigo Gurgel

Ensaísta e crítico literário do jornal Rascunho. Autor, entre outros livros, de Muita Retórica, Pouca Literatura.


Amálgama






MAIS RECENTES