"Zone of Interest", de Martin Amis, é um romance inesquecível
1.
Eis um livro inesquecível em muitos níveis, e não apenas como um todo.
É inesquecível enquanto reflexão sobre a arrogância originária do instinto de bando (racialismo) e aprofundada por uma situação extrema (guerra). É inesquecível em sua estrutura narrativa e seleção de vozes. Inesquecível em seu posicionamento sobre a “banalidade do mal”. E inesquecível por expor a prosa caracteristicamente precisa de Martin Amis em seu zênite – palavras cuidadosamente mensuradas, postas para efeito poético ou para arrepiar a alma.
Romances que se passam em campos de concentração ou zonas de guerra são ou completos fiascos ou leituras indispensáveis. Amis – um autor que nem sempre escreve livros indispensáveis – já havia acertado a mão em House of meetings (2006), que se passa em um gulag soviético. Agora ele acertou a mão novamente – ainda mais.
É segundo semestre de 1942, e o imperialismo nazista está no ápice e ao que tudo indica imparável. O campo de trabalho forçado e extermínio de Zone of interest está localizado na Ostland polonesa. Os oficiais do Reich no local fazem planos para um futuro breve de completo domínio na Eurásia. Eles têm plena consciência do que já causaram e continuam causando de “inusitado”, da França a Moscou, mas a moralidade tradicional já não conta:
“Certo” e “errado”, “bom” e “mau”: esses conceitos já tiveram seu tempo; eles se foram. Na nova ordem, algumas ações têm consequências positivas e algumas ações têm consequências negativas. E isso é tudo.
As diretrizes para a Solução Final já estão dadas e sendo executadas – com mais intensidade e fúria à medida que a sorte na guerra vai virando e, entre eslavos e anglo-saxões, os únicos que os nazistas ainda podem vitimar em massa são os judeus. O campo de extermínio no centro do romance de Amis é uma peça dessa engrenagem.
Mas Amis não traz pornografia da violência para suas páginas. Ele não está preocupado com o grafismo da violência, mas com os dilemas em que ela coloca aqueles que fazem parte do turbilhão. Assim, os momentos em que a vida humana é obliterada aparecem mais comumente nos capítulos narrados pelo personagem Szmul Zacharias – um, preste bem atenção, Sonderkommando, ou seja, um dos judeus que auxiliavam os nazistas na eliminação de judeus.
2.
Szmul ora dá a impressão de fazer o que faz apenas por inércia, por ter sido forçado e não ter como reagir, ora dá a entender que faz o que faz porque assim, pelo menos, pode salvar um ou outro dos milhares de condenados que chegam em trens vindos do oeste.
Dos três narradores que se revezam em Zone of interest, Szmul é o mais econômico de todos. Suas páginas são as mais breves e lancinantes do livro, e não reconfortam o leitor com fechamento narrativo dotado de “moral da história”. Não há como fechar uma história como a de Szmul de forma alentadora, é a implicação; a razão de sua narrativa sendo mostrar que existem situações humanas simplesmente fora do escopo do julgamento humano.
Nós somos, de fato, os homens mais tristes da história do mundo. E, de todos esses homens tristes, eu sou o mais triste. O que é demonstravelmente, e mesmo mensuravelmente, verdadeiro.
O sentido mais comum que se dá à reflexão arendtiana da “banalidade do mal” não tem vez no mundo do Mal recriado por Amis. Os perpetradores têm total consciência do plano de infâmias em que estão inseridos, e vivem se entorpecendo, seja com álcool ou com slogans, para tentar se convencer de que estão fazendo algo de bom a longo prazo e pensar o mínimo possível nas infâmias.
E os perpetradores, longe de serem máquinas frias ou entidades diabólicas, são humanos profundamente afetados pelo que fazem – o que é exatamente o que os torna inapelavelmente responsáveis pelo inferno que causam.
3.
Um outro narrador de Zone of interest é Angelus Thomsen, funcionário vindo de Berlin para o campo polonês com a função de fazer ligações burocrática com outros oficiais.
Thomsen tem um passado de mulherengo, e o poder que mais o atrai, mesmo no meio de uma guerra, é o poder atrelado à sedução do sexo oposto. Inclusive pelo status dos maridos das mulheres seduzidas – “Mulherengos adúlteros tinham um lema: Seduza a esposa, interprete o marido”. É assim, inicialmente, que ele centra seu alvo em Hannah Doll, ninguém menos que a esposa do Commandant do campo.
Só que ocorre uma reviravolta interessantíssima no desenvolvimento desse personagem. O que parecia ser um sujeito vazio, estreito e mesmo execrável, se vê realmente apaixonado por Hannah, que não deixa suas investidas totalmente sem resposta, e voilà: temos uma história de amor em pleno império nazista – bem, um tipo bem singular de história de amor.
Porque o marido de Hannah, Paul Doll, o terceiro narrador, é uma figura de relacionamento tão indefinido com a esposa (e com todo mundo mais), que, dado seu grau e tipo de envolvimento, podemos ou não estar diante de um triângulo amoroso tradicional.
Triângulo amoroso tradicional ou não, o tipo de ligação entre Paul e Hannah é outro ponto forte do enredo de Amis. Ela envolve, para início de conversa, uma quarta pessoa na relação Paul-Hannah-Thomsen, um certo Dieter Kruger, comunista, com quem Hannah se relacionara no passado, e que pode ou não ainda estar vivo. Interessaria a Paul que Kruger ainda estivesse penando em algum lugar do universo concentracional nazista, porque assim ele teria poder sobre seu destino e, por tabela, poder sobre Hannah, via chantagem. Eis o caráter de Paul Doll.
É principalmente na figura desse patético e empoderado Commandant que Amis trabalha a infinita miséria da mente totalitária.
Originalmente um teocrata, depois um monarquista, depois um militarista, sucumbi à magia do marxismo – até que coloquei Das Kapital de lado e me voltei para um intenso estudo de Mein Kampf. A ilustração não tardou a acontecer.
Inteiramente inserido na “lógica noturna” da Solução Final, ele ainda assim não perde oportunidade de chocar-se com a suposta baixeza moral daqueles à sua volta. Sobre a atividade do Sonderkommando Szmul, que aliás segue suas ordens, ele diz que “mal posso fazer um esforço para compreender. Sabe como é, eu nunca deixo de me maravilhar com o abismo de indigência moral ao qual certos seres humanos estão dispostos a descer…”
Paul Doll sente constante necessidade de se afirmar normal – “Porque eu sou um homem normal com necessidades normais. Sou completamente normal. [grifo dele] É isso o que ninguém parece entender”; “no campo do desejo carnal, como em tudo o mais, eu sou completamente normal”; “Eu sou um romântico. Para mim, tem que haver romance”; “eu nunca falaria de forma desrespeitosa com uma fêmea; e detesto linguagem vulgar”.
Como se vê, com suas confissões de normalidade, ele se coloca não apenas como superior em meio a um mundo de degenerados, mas também como um amante e marido ideal. O contraste desse discurso com a realidade tal como vista pelos outros dois narradores (e pela voz indireta de Hannah) faz parte do que torna Zone of interest inesquecível.
Provavelmente o melhor livro de Martin Amis.
Daniel Lopes
Editor da Amálgama.
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