O processo revolucionário, em toda sua extensão, é sobretudo uma incompatibilidade individual com o mundo.
1.
Todos os que, um dia, me disseram “dê poder a um homem e enfim o conhecerá”, todos se locupletaram. Não apenas os mais próximos, mas igualmente os personagens da história, das artes à política, todos só encarnam a contestação, quando estão distantes do poder.
Quando era apenas um entusiasmado e desconhecido editor, André Breton fora a própria expressão humana da rebeldia finissecular (como um dândi), constantemente próximo do eixo central da revolução estética vindoura, aliás em um só tempo responsável pela correção do Caminho de Guermantes de Marcel Proust (um marco no fluxo narrativo), leitor de Freud (segundo o qual, em plena lua de mel, procurou seu endereço na rua Bergasse, mas cujo encontro fora desapontador, afinal Sigmund lhe pareceu desleixado, filisteu e chato), bem como o mais importante articulador da chamada arte moderna, haja vista sua nota convocatória “Congresso Internacional para a Determinação e a Defesa do Espírito Moderno” (publicada em 3 de janeiro de 1922, no jornal Comoedia). Para os mais próximos, como Soupault, Aragon e Eluard, Breton externava um desejo iconoclasta capaz de promover não apenas uma desconstrução dos modelos simbolistas então vigentes, mas, sobretudo, uma revolução, ao lado do seu originalmente admirado amigo Tristan Tzara.
Quando seus propósitos estético-revolucionários ganharam as ruas de Paris, gerando um insubmisso mal-estar, que questionava a sua suposta liderança e autopromoção, Breton convocou – às pressas – uma reunião de emergência no Closerie des Lilas, bar e restaurante da intelligentsia, no Montparnasse. Acossado pelos presentes – dentre os quais Jean Cocteau, Marinetti, Hans Arp, Brancusi, Man Ray e André Malraux – Breton não pôde invalidar a sanha daqueles que o objetavam; afinal, seus argumentos pautados na destruição da beleza e da harmonia clássicas deixavam escapar um único propósito, percebido pelos demais artistas e confirmado anos mais tarde por seu biógrafo Mark Polizzotti: “Interessava a Breton consignar o Dadaísmo – e Tristan Tzara – ao lixão intelectual de uma vez por todas. ”
Logo após o incidente, e empenhado em destituir Tzara de sua espontânea liderança intelectual, Breton emitiu uma nota denunciando seu agora rival involuntário como um “impostor em busca de publicidade.”
A farsa do revolucionário Breton viera a público como uma tentativa amesquinhada de contraponto a Tzara, farsa que se confirmaria com o manifesto antidadaísta “After Dada”, publicado em 2 de março de 1922 pela Comoedia. Neste horizonte tendente às revoluções – e em qualquer esfera estética ou política – o caso Breton é significativo, sobretudo, porque revela algo contraditoriamente conservador (no sentido pejorativo) no decurso do processo revolucionário.
O caso Breton nos faz pensar que o poder e seu protagonismo – desde sua conquista até sua preservação – se dá em meio a conjunturas inesperadas, que produzem resultados jamais planejados. Portanto, alcançá-lo e preservá-lo exige dos donos do poder (para o bem da sua própria sobrevida) a redução de opções preexistentes – como contestar toda o passado a partir da vanguarda que a questiona –, o que requer inclusive restringir a capacidade de alguns e reduzir suas respectivas liberdades a partir de critérios de autoridade coletiva, segundo os quais a elite moral e intelectual é a única autorizada a conduzir o processo revolucionário, indiferente à contestação individual. Daí a face reativa e ostensiva do poder, à maneira de quem é cerceado de criticar publicamente um revolucionário Marcel Duchamp com medo de ser hostilizado pelos críticos de arte. Em todo caso, o processo revolucionário – ascendente ao poder – cabe na certeza de Friedrich Hayek: “O socialismo pode ser colocado em prática somente por métodos que a maioria dos socialistas desaprova.”
Se universalizada para toda mentalidade revolucionária, desde a estética, o socialismo supracitado por Hayek aponta para a seguinte questão, igualmente extensiva ao caso Breton: alguma convicção ideológica pode permanecer intacta, quando vitoriosa, sem fazer concessões à mudança para se preservar. Caso a almeje, não seria a franqueada mudança uma negação aos seus propósitos originais?
Neste diapasão é que se encontra o tendão do processo revolucionário, fadado à autofagia pela breve observação de Edmund Burke, para quem só se conserva aquilo que muda, cresce ou se modifica, de sorte que uma revolução permanente só é possível por meios dialéticos suficientemente capazes de autocrítica inflexível ao poder, leia-se: impossível em qualquer revolução. Isto explica em parte o porquê da esquerda lograr êxito mais por vias comportamentais, ao modo de uma revolução cultural, que por meios institucionais, inviabilizados desde a burocracia estatal soviética. Afinal, no âmbito cultural cria-se um justificado senso de rebelião, jamais questionado por sua impossibilidade.
Portanto, o processo revolucionário, em toda sua extensão, é sobretudo uma incompatibilidade individual com o mundo, cultivada psicologicamente como o ódio a um modelo julgado demasiado superior (Breton contra Tzara, por exemplo), cujo sentimento – por sua condição – é a confusão dilacerante entre a veneração inconfessada, a fixação maníaca e o mais intenso rancor. Em tal âmbito, compensar tal sentimento convoca aquele que o cultiva, não ao exame de consciência e à autoconfissão, mas à vingança contra o modelo em questão, que o torna fonte de uma ordem natural, outrora corrompida, cuja volta radical ou revolução é justificadamente requisitada. Como é um espelhamento reativo do modelo questionado, o processo revolucionário é inesperadamente “conservador” porque duplica o rival assimétrico que pretende depor.
2.
Em todo caso, e no decurso do processo revolucionário, não há nada que escape às três leis da política de Robert Conquest:
A) “Todo mundo é reacionário nos assuntos que conhece.” Segundo Michael Oakeshott, isso se dá nos seguintes termos: quando algo ameaça a preservação de um indivíduo, ou mesmo de um povo, o princípio conservador logo se impõe, fenômeno observável na rusga entre Breton e Tzara. Em outro âmbito, isso explica por que toda revolução tende a fracassar; pelo simples fato de que, quando o poder é alcançado, uma identidade firme logo se forma para preservá-lo ad infinitum. Insuspeitadamente, para tal espírito, preservar quer dizer conservar;
B) “Toda organização que não é declaradamente de direita se transforma, no final das contas, em uma organização de esquerda.” Ora, não por acaso só pode existir discurso revolucionário fora do eixo central do poder, que o inviabiliza por seu centralismo;
C) “A forma mais simples de explicar o funcionamento de qualquer organização burocrática é presumir que seja controlada por seus inimigos.” Isso explica há muito a mentalidade revolucionária, que se alimenta do senso de vingança contra os inimigos, ou melhor, àqueles que ocupam o establishment.
3.
Em 1930, passado o entrevero com Tzara, André Breton escreveu: “o mais simples ato surrealista consiste em lançar-se à rua, revólver em punho, e atirar às cegas, tão rápido quanto se puder apertar o gatilho, contra a multidão.”
Atualmente, ao confirmar o ímpeto revolucionário e niilista de Breton, o Estado Islâmico o faz parecer caricatural, lançando as suas confusas e virtuais certezas ao limite da constatação hegeliana, segundo a qual um conceito só se transmuta em realidade concreta mediante a inversão do seu significado abstrato. Portanto, onde se lê “revolução”, se oculta vingança; e quando a vingança estiver oculta, alguém a levará ao poder. Tudo mais é conservação.
Moral da história: Dê poder a um homem e saberá o quão reacionário é o homem.
Ivan Pessoa
Professor da UFMA, Mestre em Ética e Epistemologia.