O rapper lamentou a "manipulação midiática" que teria levado à queda de Dilma Rousseff.
Fui durante a minha adolescência um rapper. Compus letras criticando o capitalismo e a mídia manipuladora que mostrava os membros do MST como bando de marginais, defendia a ideologia socialista e sonhava utopicamente com um mundo melhor, livre do imperialismo norte-americano e dos banqueiros que visavam o lucro enquanto a população estava na miséria. O nome do meu grupo era Impacto Social. Queria causar impacto nas elites e, ao mesmo tempo, fazer um pacto com o povo pobre como eu. Disponibilizei uma das minhas “músicas” desta época na internet. Quem quiser ouvir, que a procure. Não me responsabilizo pelos minutos perdidos da sua vida.
Um dos meus ídolos nos anos 90 e início dos 2000 era o Mano Brown, líder dos Racionais Mc’s, que retratava as dificuldades de moradores da periferia. Sabia de cor todas as letras e pautava minhas opiniões a partir de suas ideias. Outro rapper que admirava era o GOG, que me fez odiar o presidente que estava no poder no final do século passado. Também gostava do Face da Morte, que tinha letras que exaltavam guerrilheiros terroristas.
Acontece que me tornei adulto, li muitos livros além de apenas ouvir rap. Minha visão de mundo mudou. Depois de votar de acordo com o que defendiam meus ídolos, ou seja, no PT, me decepcionei com os rumos do país, com a desfaçatez de quem se utilizou dos pobres para chegar ao poder e enriquecer. Jamais esqueci a fala do Lula, ao lançar o Fome Zero: enquanto houvesse alguém passando fome neste país, ele jamais dormiria direito. Nossa, imagine ficar 13 anos assim, sem nem tirar um cochilo!
Enquanto isso, os rappers que admirava passaram a ganhar muito dinheiro em shows para a classe média, a aparecer na mídia, a mudar o discurso de protesto. Começaram a fazer clipes com carrões, mulheres bonitas e balançando notas de dólares em frente às câmeras (olha quanta grana estou ganhando, seu trouxa!). O protesto, a rebeldia, a crítica a quem está no poder continua sendo feita apenas por rappers que não aparecem, que continuam fazendo um trabalho independente, mas sem sucesso.
Nesse fim de semana, li em alguns sites compartilhados por “amigos” nas redes sociais sobre o discurso do Mano Brown em um show. Disse ele, num tom messiânico típico de suas apresentações e sob gritos de adoração dos fãs, que a população das favelas virou as costas para Dilma. Além disso, afirmou que o povo se deixou levar pela mídia manipuladora, sobretudo a Globo, e que o silencio da favela vai deixar que a elite tome de volta o que a favela conquistou.
Ora, artistas como ele, que hoje nadam em dinheiro, foram porta-vozes de uma população sofrida, que continua ainda sofrida, mas que não pode se sentir sofrida porque eles, os “artistas”, estão dizendo que não, que ninguém mais sofre, que tudo melhorou, e, se ainda não melhorou completamente, é só ser paciente, quem sabe daqui a mais 13 anos, pois as coisas estão mudando, é só ter calma. Você que está na fila de emprego, você que tem o salário que não dura nem até a metade do mês, você que é mal atendido no SUS, você que tem o filho numa escola caindo aos pedaços e dominada por traficantes, você que passa fome, você que ganha Bolsa Família mas não quer viver disso para o resto da vida, você que entra na universidade mas não consegue pagar o financiamento, você que está com o financiamento atrasado da casa e corre o risco de devolvê-la para o banco, você que não tem casa, mora na rua ou de favor, você não tem o direito de reclamar, você está sendo injusto com o governo que te estende uma das mãos (enquanto a outra segura a dos empreiteiros e banqueiros).
E quanto à “mídia manipuladora”, é curioso que essa expressão é empregada por sites totalmente parciais, que também manipulam a informação, defendendo o interesse de suas ideologias. Alguns, inclusive, recebem ajuda financeira do governo. Não querem, é óbvio, perder o osso.
O que ficou claro no discurso do Mano Brown foi assumir, quebrando o discurso do golpe antidemocrático, que o povo tirou Dilma do poder: “Aí eu falei: já que o povo escolheu isso, que assim seja. Daqui para frente, fechou um ciclo na minha carreira e na minha vida. Se o povo decidiu derrubar um governo, que assim seja. Daqui para frente, é cada um cada um. Não siga o Mano Brown que você pode tombar do precipício”.
Mano Brown dixit.
Cassionei Petry
Professor e escritor. Seu novo livro é Cacos e outros pedaços.
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