A desastrada intervenção de Lula fixou os contornos finais desse triste episódio de nossa história política.
Os 25 votos acima do 342 necessários fixaram em números, mas não exprimiram do ponto de vista político toda a contundência da derrota petista. Todos os agentes políticos – a começar pelo próprio PT – precisam ter consciência deste ponto. Medir adequadamente o volume do movimento pró-impeachment é a primeira condição para uma percepção realista da nova situação política que se instaurou no país desde a votação do último domingo.
Comecemos pelo óbvio: a presidência Dilma acabou. Suas chances de sobrevivência no Senado são ínfimas, e mesmo no caso de se concretizarem, suas condições de governabilidade não existem mais. Evaporaram. Liquefizeram-se. Para bem aquilatar isto, basta observar que o apoio à presidente ficou reduzido ao próprio PT, ao PCdoB e ao PSOL. Se ela quase nada conseguiu fazer nos longos cinco anos e quatro meses durante os quais teve à sua disposição uma ampla maioria congressual, por certo não fará melhor agora, derrotada e exposta ao mundo como uma líder caricata.
Registremos, em segundo lugar, que o rito inicialmente sugerido pela Câmara foi derrubado, tendo prevalecido a versão do STF, muito mais favorável ao governo. Mais adiante, a três dias da votação em plenário, o recurso (indevidamente) impetrado pelo Advogado Geral da União no sentido de suspendê-la foi rejeitado por acachapantes 8 X 2 – isto, dito seja de passagem, num STF com 8 ministros nomeados por Lula e Dilma.
Em terceiro lugar, a aprovação popular ao governo Dilma. Também aqui, o contexto é essencial. Até as manifestações de 2013, Dilma Rousseff ostentava índices de aprovação da ordem de 60%; Deus e todo mundo davam-na por imbatível na sucessão presidencial de 2014. As manifestações cortaram-na pela metade, o que não impediu o marqueteiro João Santana de declarar, do alto de sua arrogância, que a levaria de volta aos 60%.
Santana não contou com o efeito devastador de dois fatos novos: a campanha eleitoral mentirosa, ocultando a real situação da economia, e a revelação, pela operação Lava Jato, de que o PT se envolvera até a medula no assalto à Petrobras. Com estes dois fatores, Dilma passou a surfar sobre diáfanos 10% de aprovação.
Quarto, a opinião pública e as ruas. Em priscas eras, o PT se via (e era visto) como o dono das ruas. A praça era dele, como o céu é do condor. Perplexos, seus chefes perguntavam-se “onde foi que erramos”, não compreendendo que as pernas do partido estavam sendo arrancadas por uma criatura de múltiplos tentáculos: a prepotência e o despreparo da presidente; as infrações por ela cometidas contra a legislação orçamentária e fiscal; o aprofundamento da crise econômica, fruto de suas políticas alucinadas, adicionando centenas de milhares de trabalhadores ao rol dos desempregados e, last but not least, a progressiva evidência de que o próprio Lula provavelmente se envolvera em maracutaias de bom tamanho.
Ao longo do percurso acima relembrado, um símbolo sério, o juiz Sérgio Moro, constituiu-se como um poderoso contraponto simbólico a Lula, o outrora respeitável símbolo da probidade. Desse ponto em diante, nem toneladas de mortadela e hectolitros de tubaína salvavam as manifestações pró-Dilma do raquitismo que as acometera. As maiores manifestações foram indiscutivelmente as de apoio ao juiz Moro e ao impeachment. Contra o suposto monopólio petista das ruas, funcionou o princípio similia similibus curantur (o semelhante pelo semelhante se cura).
Mas isso ainda não era tudo. Não para Lula. Imbuído de uma visão puramente instrumental da política, anêmica em valores e robusta em malícia, incensado como grande negociador, Lula acreditou piamente em sua capacidade de reverter a tendência pró-impeachment. Contava, para tanto, com três ingredientes: (1) sua presença em Brasília, impregnando a atmosfera da capital com seu inconfundível carisma; (2) sua despudorada inclinação a jogar o jogo bruto: assumindo para todos os efeitos práticos as rédeas do poder, instalou-se num hotel e se dedicou a tentar seduzir os deputados com verbas e cargos (e certamente também a ameaçá-los com retaliações); (3) cabendo a Dilma, a essa altura reduzida a uma simples correia de transmissão, mandar para o Diário Oficial os resultados das “negociações” de Lula.
A desastrada intervenção de Lula fixou os contornos finais desse triste episódio de nossa história política. Não descarto que ele possa recuperar uma parte importante de seu capital eleitoral, mas a figura simbólica outrora respeitada mesmo por seus adversários, o líder político capaz de apontar horizontes e inspirar a nação, esse está morto.