Em “Abaixo do Paraíso”, André de Leones faz um retrato da corrupção brasileira, através de um tarefeiro que age a mando de políticos.
Abaixo do paraíso é resultado do seu tempo.
Em seu recente romance, o goiano André de Leones usa como matéria ficcional o lodo da corrupção entranhado nos homens e na sociedade, jogando luz sobre um agente que alimenta essa máquina de chantagens, subornos e outros crimes hediondos, e, portanto, torna-se a própria máquina.
Este é Cristiano. Um sujeito que age a mando de políticos, mas não consta em folha de pagamentos. Opera na surdina, levando e trazendo pacotes, documentos. É “o cara que vai ao banco pagar as contas do gigolô da secretaria de Educação, que leva a putinha do assessor de imprensa do governador ao dentista, que se enfurna num quartinho de hotel para se encontrar sabe-se lá com quem e comprar ou vender sabe-se lá o quê.”
Apesar disso, reconhece-se uma sombra, um nada. “Não sou nada. Levo e trago não me interessa o quê. Anos e anos. Nada.”, declara a Paulo, amigo da época de faculdade, a quem pede asilo depois de um tempo fora de circulação. Paulo é assessor especial da Secretaria de Fazenda, em Goiânia, e aquele que faz a intermediação entre as tarefas dos políticos e Cristiano. Quem opera a máquina de dentro.
Tudo o que for necessário para atender aos desejos dos inescrupulosos “reizinhos”do poder público, “babacas trincadões” movidos pelo desgoverno de sexo, drogas e violência, cujo expediente amoral não reserva atingir quem joga no mesmo time. Para esse novo serviço que Paulo contrata Cristiano. Ir a Anápolis pagar por um dossiê. Ocorre que algo dá muito errado e o tarefeiro decide largar tudo de mão, esconder-se.
Dividido em dias da semana, o romance segue uma cronologia de segunda a segunda. Nesse primeiro arco supracitado, Leones adota um ritmo ágil, com linguagem seca e cortante, e diálogos maduros, infiltrados pela acidez crítica e por uma bile de desencanto. O universo construído, a todo momento, relaciona-se com a realidade sociopolítica brasileira atual. A geografia das cidades e os ambientes internos são todos sujos e desoladores, irradiados por um calor gordurento, um amarelo febril que sugere refletir a composição anímica daqueles que perambulam nesses cenários.
Ainda que o plano narrativo transcorra no presente, incidências do passado de Cristiano evocam fantasmas e mistérios: suicídios, fraturas desencadeadas por segredos, culpas confrontadas por passagens bíblicas. Tais intervenções, no entanto, não comprometem a fluidez da trama que, em certos momentos, atinge a potência contagiante de um thriller, o suspense que rege as curvas dramáticas das histórias policiais.
O caso é que, com a saída de cena do protagonista, o romance caminha para dentro, apequena-se.
Leones diminui a carga de voltagem e o leitor, ávido pelo prosseguimento da primeira parte, percebe-se entrando num anticlímax. O texto sofre um descompasso e leva tempo para se acostumar com essa inflexão. Fazer a passagem de um começo de estilo vigoroso, complexo em referências e significações, para um drama familiar comum, um acerto de contas com quem ficou para trás, consigo.
A sorte é que o autor goiano é um dos mais habilidosos de sua geração, com densidade textual capaz de segurar o interesse. Cristiano se refugia num hotel, conhece e relaciona-se com novos personagens, volta para Silvânia, cidade natal, e, desse modo, o segundo arco começa a apresentar uma nova camada, refletir sobre uma espécie distinta de corrupção: a que não está escancarada no sistema, mas na essência humana.
A fazenda onde passou a infância é um território de reaproximação com o pai, a madrasta, a tia e a meia-irmã, da mesma forma que uma paragem na qual residem dores, desejos e revelações. Cria-se uma ambiguidade perversa, uma ideia de reconciliação que, de fato, não passa de perversão. Cristiano carrega o lodo em si, um lodo hereditário, e contamina a tudo e a todos: o luto, as convenções fraternais, a memória dos mortos.
Neste ponto, o romance insinua-se um ciclo incompleto, porém um longo diálogo mais à frente fecha algumas pontas, proporcionando ainda uma ardilosa reflexão sobre crime e castigo, através de uma analogia a uma cena clássica de Superman, de 1978.
Num período em que a política brasileira se tornou uma arena de polarização extremada, Leones faz um retrato de um país cuja corrupção é ambidestra. Como diz uma personagem, a certa altura: “(…) Silvânia, Goiânia, Brasília, Smolensk, acho que tudo é a mesmíssima bosta.” Ninguém está a salvo, afinal.
Sérgio Tavares
Jornalista e escritor, autor de Queda da própria altura (2012), finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala (2010), vencedor do Prêmio Sesc.
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