Para um livro grandioso e clássico, uma grandiosa e clássica tradução.
Herbert Moritz Caro (Berlim, 16 de outubro de 1906 – Porto Alegre, 23 de março de 1991) era um típico judeu secular da Alemanha. Estudou Direito apenas para agradar o pai, chegando a obter doutorado nesta área pela Universidade de Heidelberg em 1930; no íntimo, era um homem de letras, nada religioso, mas afeto às coisas do espírito. Com o crescente antissemitismo na Europa, migrou para a América e se estabeleceu em Porto Alegre no ano de 1935. Nessa cidade, talvez impelido por uma necessidade de pertencimento comunitário que não experimentava antes, em seu país de origem, antes das perseguições, acabou se aproximando do judaísmo, vindo a ser um dos fundadores da sinagoga Sociedade Israelita Brasileira de Cultura e Beneficiência (SIBRA) em 1936.[1] Aos poucos, reconhecido por sua erudição, passou a frequentar os círculos culturais da capital gaúcha. A convite do escritor Erico Verissimo, entrou para a famosa Sala dos Tradutores da Editora da Livraria do Globo, um antológico espaço onde intelectuais trabalhavam em regime de imersão, cada um em seu cubículo envidraçado, mas compartilhando espaços de convivência como a biblioteca e a cozinha. Caro ali trabalhou de 1939 até 1948, ano em que, passando por dificuldades, a editora teve de encerrar as atividades da Sala. E foi ali, na Sala, em 1942, que Herbert Caro concebeu sua tradução de Os Buddenbrook, primeiro romance do escritor Thomas Mann.
Thomas Mann (Lübeck, 6 de junho de 1875 — Zurique, 12 de agosto de 1955) tinha 25 anos em 1900, quando conclui Os Buddenbrook. Levou três anos para escrever a saga familiar e o fez instigado pela proposta de Samuel Fischer, judeu, fundador da poderosa editora Fischer-Verlag, o qual desafiou o aspirante a escritor a lhe apresentar “uma obra de prosa maior, talvez um romance, mesmo que não seja muito extenso”. Mann não se conteve e saiu-se com um calhamaço de quase mil páginas, o que evidentemente assustou o editor, ainda mais por se tratar do livro de um quase desconhecido principiante.
E não apenas a extensão do manuscrito foi questionada: o escritor Moritz Heimann, parecerista da editora (e mais um judeu na história), criticou as longas e pormenorizadas descrições, um tributo temporão à prosa naturalista, aliás pouco comum no corpus da literatura alemã; desaprovou as digressões sobre diversos temas, em caráter quase enciclopédico, da filosofia de Schopenhauer à sintomatologia do tifo, passando pela análise financeira do preço do milho, inseridas em meio à narrativa sem se amalgamarem a ela para compor unidade de fato harmônica; apontou o estilo rebuscado de Mann, repleto de arcaísmos, de imagens poéticas e de construções sintáticas complicadas, uma escrita profusa e pirotécnica, capaz de repelir um público já catequisado pela busca de concisão e pela objetividade típicas do mot juste preconizado pelo realismo flaubertiano.
Aconselhado a cortar pelo menos metade do texto, Mann reagiu com a teimosia típica dos jovens autores, que costumam confiar bastante no próprio talento (quer o tenham, quer não): negou-se a fazer qualquer mudança. Foi tão irredutível que, por fim, em 1901, Os Buddenbrook foi lançado da forma como fora redigido. No caso, apesar da pouca idade, Mann já havia então desenvolvido genuíno talento literário, o que contribuiu para o sucesso que o livro obteve.
O romance conta a história de uma família de comerciantes em uma cidade com todas as características de Lübeck, entre os anos de 1835 e 1877, do seu apogeu até o declínio, apresentando quatro gerações: a primeira centrada na figura do patriarca Johann Buddenbrook (homem ilustrado, que gosta de tocar flauta e que expandiu os negócios da família durante o período das guerras napoleônicas); a segunda representada por seus filhos Gotthold (que sempre teve relacionamento conflituoso com o pai, casa-se com uma jovem de origem humilde e acaba por receber apenas uma pequena parte da fortuna paterna) e Johann Jr. (herdeiro dos negócios da família); a terceira personificada pelos filhos de Johann Jr., que são Thomas (um sujeito um tanto dândi, que se elege senador e se casa por conveniência) e Christian (homem sem pendor para os negócios, que vive um escandaloso casamento com uma atriz e, cada vez mais neurótico e hiponcondríaco, termina seus dias em um hospício); e a quarta retratada no adolescente Justus Johann Kaspar, o “Hanno” (rapaz adoentado, hipersensível e apaixonado por música).[2]
A derrocada do clã se dá ao mesmo passo em que ocorre a ascensão da família Hagenström, caracterizada por traços físicos como “grandes olhos negros”, “cabelos pretos, extraordinariamente espessos”, “nariz achatado”, que contrastam significativamente com o fenótipo ariano dos Buddenbrook. A aparência dos Hagenström corresponde a um estereótipo judaico muito disseminado na época, refletindo o fato de que, na trama, Hermann Hagenström é casado com a herdeira de uma rica família judia de Frankfurt, proprietária de uma bem sucedida casa de exportação. Assim, fica marcado que os antagonistas dos Buddenbrook, seus competidores nos planos político e econômico, são, ao menos em parte, de origem semítica. A caracterização da família Hagenström e o repúdio que a ela dirigem as demais personagens deixa transparecer um laivo de antissemitismo que, talvez, antes de ser do próprio autor Thomas Mann, possa ser creditado ao espírito da época, tanto que, aparentemente, não incomodou os editores e pareceristas judeus da Fischer-Verlag e tampouco seu tradutor judeu no Brasil.
Seja como for, a presença de judeus tidos como praticantes de usuras e rapinagens na trama não pode ser considerada mais do que um detalhe, eis que a decadência dos Buddenbrook prescinde de um culpado: no esquema naturalista dentro do qual se articula o enredo, a derrocada é consequência de um determinismo biológico, da degradação natural de uma linhagem, que se manifesta concretamente em índices narrativos como a deterioração dos dentes de diversos membros da família (que surgem cada vez mais “minados e gastos”), a diminuição gradual das refinadas citações em francês na boca das personagens (cuja fala se aproxima cada vez mais do baixo-alemão, o que se perde bastante na tradução para o português, apesar do esforço de Herbert Caro) e a morte cada vez mais precoce dos representantes das sucessivas gerações (culminando com o perecimento de Hanno ainda na adolescência, vítima do tifo).
De fato, parece natural e inevitável o percurso da primeira parte do livro (em que o patriarca Johann Buddenbrook recebe os parentes em grande estilo para apresentar o novo casarão da família) até a última (em que Gerda, viúva de Thomas Buddenbrook e mãe de Hanno, decide vender o que ainda resta dos bens da família e partir para Amsterdã). A ruína do clã encontra paralelos com o envelhecimento, a agonia e a morte de um organismo vivo, como se esse fosse uma contingência biológica, o único caminho possível – uma concepção fatalista e encravada no pessimismo.
O tema da ruína e da decadência é apenas um daqueles que Os Buddenbrook antecipa e que viriam a se repetir em toda a produção de Mann: o conflito entre a vida burguesa e a existência atribulada do artista (em flerte constante com o decadentismo), a gênese artística como produto da degeneração biológica, as intersecções e descompassos entre dever e honra, a situação-limite representada pela doença, a sugestão de paixões homoeróticas e a onipresença de motivos musicais. O Prêmio Nobel de Literatura é sempre conferido a um autor pelo conjunto de sua obra; mesmo assim, em 1929, ao laurear Mann, a Academia Sueca fez questão de destacar que a honraria lhe era concedia “principalmente por seu grande romance Os Buddenbrook, que conquistou crescente reconhecimento como uma das obras clássicas da literatura contemporânea”.
Para um livro grandioso e clássico, uma grandiosa e clássica tradução. O trabalho de Herbert Caro evidencia um profundo entendimento do original e é extremamente bem sucedido em reproduzir, na língua portuguesa, toda a erudição e a riqueza lexical de Thomas Mann. Contudo, talvez por sua maior intimidade com a língua de partida (o alemão), Caro fez uma versão que fica a dever no aspecto estilístico, em particular nos quesitos de naturalidade e fluência; com efeito, em inúmeros trechos, especialmente por conta dos padrões de construção frasal escolhidos, quase se reconhece o idioma original do texto, e é preciso fazer esforço para entender o que está dito em português.
Pormenores estéticos à parte, a tradução de Herbert Caro é fiel a tudo aquilo que faz de Thomas Mann um dos mais importantes escritores do século XX, e trazê-la novamente ao grande público é um regalo a ser aproveitado por aqueles que sabem encontrar beleza nas grandes extensões narrativas e nas vastas paisagens psíquicas e sociais retratadas neste verdadeiro épico do declínio.
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[1] Seria interessante comentar também sobre a participação de Caro na fundação do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall (ICJMC), em 1985. O ICJMC tem como objetivos favorecer o reconhecimento da identidade cultural da comunidade judaica brasileira (e gaúcha, em particular), sendo também repositório da memória da coletividade judaica no Rio Grande do Sul. Abriga um grande arquivo documental, incluindo o acervo de Herberto Caro, com fotos, recortes de jornal e cartas trocadas com os escritores que traduzia (o próprio Mann entre eles).
[2] Uma árvore genealógica dos Buddenbrook pode ser encontrada aqui.
Rafael Bán Jacobsen
Físico da UFRGS e escritor. Seu romance Uma leve simetria (2009) foi finalista do Prêmio Açorianos.
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