Lula, Bolsonaro e o sebastianismo à brasileira

por Paulo Roberto Silva (02/04/2017)

Jair Messias Bolsonaro ocupa o espaço do messianismo sebastianista que foi do PT desde os anos 1980.

Deputado Jair Bolsonaro em seu gabinete. (foto: Estadão)

O Estado de S. Paulo trouxe esse final de semana um perfil sobre o projeto político de Jair Messias Bolsonaro, o candidato brasileiro a Donald Trump. Basicamente, o que ele apresenta é a tradicional combinação de discurso de ordem e populismo econômico, com ênfase no papel condutor do estado, que tanto sucesso tem feito na nossa história.

É Bolsonaro, mas podia ser Lula, Geisel, Golbery, Getúlio Vargas, Floriano Peixoto ou José Bonifácio. O centro de nossa tradição política é a defesa de um estado forte capaz de ordenar a sociedade e induzir a economia. O liberalismo político e econômico existiu em soluços episódicos e incompletos – Farroupilha, o encilhamento, Dutra, Collor, FHC (até certo ponto).

Por que historicamente optamos por nós submeter a uma espécie de líder mítico – o Imperador, o grande líder positivista, o Pai dos Pobres, as Forças Armadas, Lula Guerreiro do Povo Brasileiro – ao invés de construir uma cidadania na qual nós somos donos de nosso próprio destino? Por que nós, brasileiros, aspiramos terceirizar nosso destino a um Messias profano?

Tendo a crer que este é o resultado de uma questão de origem. Fomos colonizados por dois projetos opostos, igualmente portugueses. Um foi o projeto dos jesuítas. Outro o da Coroa portuguesa.

Os jesuítas vieram com a missão de cristianizar os infiéis da terra. Mas eles operavam em bases diferentes dos missionários dominicanos e franciscanos que hegemonizaram o catolicismo na América espanhola. A abordagem jesuítas promovia o sincretismo entre o catolicismo e as religiões indígenas, para promover uma cultura mestiça. De certa forma, o modelo implantado por Manoel da Nóbrega promovia a formação de aldeamentos autônomos e empreendedores. As missões guaranis foram a versão mais radical deste projeto.

A Coroa Portuguesa, que comandava o litoral, promoveu o transplante das instituições de Avis ao país. Menos articuladas e mais adaptáveis que o complexo arcabouço jurídico dos Habsburgo na América Espanhola, as instituições portuguesas buscavam simplesmente comprar a fidelidade das elites fidalgas ao Rei, por meio de sinecuras obtidas com o espólio do Estado. O fidalgo local agia em nome do Rei, e parasitava a economia local com tributos extorsivos.

O modelo jesuíta foi herdado por suas nêmesis locais – o bandeirante mameluco em São Paulo, o estancieiro gaúcho no Sul – tornando o Centro Sul um foco permanente de desobediência à Coroa. Por outro lado, o modelo de Avis se instalou no litoral nordestino, consolidou-se no sertão após a Guerra dos Emboabas, e se espalhou pelo Norte, neste caso em aliança com os jesuítas.

Na área de hegemonia da Coroa, o sebastianismo operou como instrumento de controle ideológico dos mais pobres. A primeira demonstração do caráter aglutinador do messianismo sebastianista se deu na Batalha dos Guararapes, para impulsionar o sentimento português na população pernambucana contra o invasor holandês.

De certa forma, o sebastianismo foi fundamental para incutir na população brasileira o respeito à ordem, visto como respeito à Coroa, e a negação da autonomia do cidadão enquanto sujeito político. Ao mesmo tempo, com a transferência da corte portuguesa ao Brasil, sob Dom João VI, o processo de cooptação das elites se intensificou, avançando inclusive sobre os quatrocentões paulistas, herdeiros dos rebeldes bandeirantes. A elite gaúcha seria a última a aderir, e sua inserção plena no sistema nacional só aconteceria sob a liderança de Vargas.

A cada onda de avanço do poder institucional, reforçava-se o aparato repressor e a mística do soberano. É sintomático que uma das primeiras medidas de Dom João VI no Brasil tenha sido restabelecer o beija-mão, atitude simbólica que sinaliza o poder mítico do soberano. Da mesma forma, a República tratou de enfatizar o papel dos militares como defensores da nação.

A industrialização e as políticas de desenvolvimento econômico implantados no século XX demandaram a instalação de regimes de força. Vargas e os militares comungavam das mesmas crenças positivistas, e esperavam impor a Ordem e o Progresso sobre a sociedade a partir de um controle rígido do Estado. Ambos levaram a mistificação e a negação da cidadania a níveis inéditos, ao mesmo tempo em que moldavam uma sociedade de massas.

PT e Bolsonaro são frutos do sistema político e econômico engendrado por Vargas e pelos militares. Lula foi criado pelo sindicalismo pelego, e ascendeu sob a proteção do governo militar, até que as suas ambições ultrapassaram os limites do regime e ele passou à oposição. Mas seu projeto de inclusão pelo consumo nega a cidadania naquilo em que ela afirma​ a autonomia do sujeito, e a reclamação do petismo quanto à ingratidão dos pobres é uma evidência disso.

Bolsonaro moldou sua visão de mundo também sob o regime militar. Tanto na política quanto na economia, não há diferenças de projetos entre ele e o PT. O que existem são divergências no campo da moral. Mas quando FHC buscava implantar reformas liberais, Bolsonaro e PT estavam do mesmo lado.

Dadas suas raízes no imaginário profundo do brasileiro, é natural que o debate político seja polarizado entre eles. Porque a alternativa é dizer que não há Messias, Dom Sebastião não voltará e, se não tomarmos nas mãos a nossa vida e de nosso país, ninguém o fará. A alternativa é dizer que não existe Papai Estado tomando conta de nós. Ou seja, a alternativa é dolorosa. E libertadora.

Paulo Roberto Silva

Jornalista e empreendedor. Mestre em Integração da América Latina pela USP.

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