Atta Troll: contra a poesia desfigurada

por Fabrício de Moraes (17/04/2017)

Em "Atta Troll", o poeta alemão Heinrich Heine constrói uma defesa sobre a autonomia da poesia.

(nota: esta é a resenha de um livro organizado por Wagner Schadeck, colunista da Amálgama)

“Atta Troll e outras canções”, de Heinrich Heine (Anticítera, 2017, 217 páginas)

Se considerarmos que Paul Valéry estava correto ao afirmar que “um poema ruim é aquele que se desfaz em sentido”, talvez possamos ser tentados a unirmo-nos ao coro do lugar-comum que sentencia o poeta como o nefelibata par excellence. Todavia, mediante uma perspectiva mais profunda sobre a filosofia da composição subjacente à frase do poeta e crítico francês, vemo-nos compelidos a corroborar, consigo, que “o trabalho de um poeta consiste menos em buscar palavras para suas ideias do que em buscar ideias para suas palavras e ritmos predominantes”.

E talvez com essa afirmação, tomando como moto a famosa frase de Mallarmé a seu amigo Degas – hoje constante em todos almanaques rasteiros de literatura – de que poesia não se faz com ideias mas com palavras, possamos nos lançar mais uma vez ao círculo vicioso, para não dizer espiral do silêncio, da antiga e falsa dicotomia entre a poesia engajada e a poesia nefelibata.

Em Atta Troll, o poeta alemão Heinrich Heine, mais do que um primoroso poema com ursos dançarinos e revolucionários, espíritos amaldiçoados de todas as épocas numa caçada noturna, e bruxas com seus filhos cadáveres, constrói uma defesa da autonomia da poesia, defesa esta que jamais, caindo em autocontradição, se expressa como simples ardor apologético.

Logo no princípio do poema, Heine nos apresenta o urso Atta Troll, que, juntamente com sua consorte Mumma, dança e realiza suas performances para o público humano, num contraste de sua posição aristocrática natural (tomada aqui em toda a amplitude do termo) e o trabalho servil e cômico ao qual é agora coagido:

Perante a população ei-lo que dança!
Ele, ele que outrora tão soberbo
Como rei das florestas habitava
Tão livremente o píncaro dos montes!

E é para ganhar alguns escudos
Que ele tanto se esforça e se afadiga!
Ele, ele que há pouco, em meio às selvas,
Na majestade de um robusto ânimo
Se julgava senhor do mundo inteiro!

Todavia, revoltado contra esse tratamento ignominioso que lhe é dispensado, Atta Troll certo dia rompe as cadeias e foge para as florestas, onde, com fervor político, discursa, perante seus filhos, contra a injustiça do mundo dos homens:

Morte e condenação! Ah! Esses homens,
Esses malditos arqui-aristocratas,
Contemplam com desdém os outros entes
Com a insolência de um senhor despótico!
(…)
Os direitos do homem! Quem, dizei-me,
Quem vo-los outorgou? A natureza?
Oh! Tão desnaturada não é ela!

Os direitos do homem! Quem, dizei-me,
Quem esses privilégios concedeu-vos?
A razão? Ela ainda é razoável!

Dum ponto de vista panorâmico, o poema de Heine aborda a tensão entre duas perspectivas então vigentes e antitéticas sobre a natureza. De um lado, os ideais da Revolução Francesa, que tomavam a natureza inculta, o direito natural, como sua fonte e ponte de partida. Daí Atta Troll, com seu discurso igualitário, exigindo a abolição imediata do domínio humano sobre os demais entes do reino natural. Grande parte da ironia do poema repousa nas consequências e eventuais absurdidades desse hipotético colapso das hierarquias naturais.

De outro lado, porém, Heine, refletindo as visões, ou mais exatamente as reações, de Goethe[1] para com essa natureza virgem, descreve um esplendoroso quadro (uma das passagens mais belas do poema) de uma caçada noturna na qual espíritos malditos, hereges e párias, incluindo o próprio Goethe, percorrem os bosques sombrios como forma de castigo eterno. E isto ainda mais estranhamente se dá quando o caçador se encontra na casa de Uraka, a bruxa e mãe de Láscaro, seu companheiro de caçada e cadáver redivivo por meio das poções e unguentos mágicos preparados e administrados por sua genitora. De certo modo herdeira da goetheana Noite de Valpurgis, essa atmosfera será retomada em seu “poema-dança” (Tanzpoem) “Doutor Fausto”, publicado em 1846, alguns anos após a primeira edição de Atta Troll.

Uma dessas figuras condenadas é justamente Herodíades, tão bela ao ponto de o caçador – o eu-lírico na passagem em questão – ponderar a danação de sua alma em troca da companhia eterna da dançarina. Curiosamente, além de fundir Herodíades e Salomé[2] numa única figura sedutora, Heine, talvez sinalizando tacitamente para suas origens judaicas, descreve que as tradições afirmavam, ao contrário ou complementarmente às Escrituras, que João Batista era objeto não da aversão, mas do amor da esposa de Herodes:

Ama-me, e vem a mim, bela Herodíades!
Ama-me e vem a mim! Ao longe atira
O prato ensanguentado e a cabeça
Do santo que não soube apreciar-te.
Eu sou o cavalheiro que procuras!
Para mim é de certo indiferente
Que estejas morta e mesmo condenada;
Sobre isso não tenho preconceitos;
Eu, cuja salvação é problemática;
Eu, que mesmo duvido por momentos
De minha própria vida.
Junto de ti cavalgarei à noite
Entre a chusma infernal dos caçadores;
E nós riremos!

Outro ponto digno de nota é a referência, que acaba se tornando refrão ao longo da obra, ao poema “O Rei Negro” (“Der Mohrenfürst” – a tradução literal do título em alemão seria algo como o Príncipe ou Rei Mouro.), de Ferdinand Freiligrath, citado na epígrafe do prefácio de Heine, no qual um guerreiro mouro, que tocava tambores adornados com caveiras humanas, cercado de realeza e poder, é levado cativo por conquistadores e posteriormente, vivendo entre saltimbancos, é obrigado a encantar plateias com seus dons musicais como forma de subsistência.

Valendo-se desse mote, Heine satiriza não o poema ou seu autor, a quem, na verdade, admirava, mas sim a submissão da poesia à égide ética ou política, em especial o nacionalismo e militarismo que então grassavam em sua Alemanha. Assim, Atta Troll é o paralelo e a caricatura de um nobre banido, subjugado às performances do mais grosseiro entretenimento como forma de vida.

Talvez com isto Heine esteja advogando que a poesia, caso cativa de uma ideologia ou partido, torna-se sempre, num falhanço irredimível, objeto de troça de seus oponentes. Ou dito de outro, o patético (tomado aqui no sentido de pathos), ainda que imbuído dos fins mais morais e louváveis, distorce o propósito e natureza do poema. É o que o poeta afirma, de modo memorável, em seu prefácio:

Há espelhos, cujo vidro está cortado em facetas tão oblíquas que o próprio Apolo neles representado não seria mais do que uma caricatura: rimo-nos então da caricatura, e não do deus.

Atta Troll é o testemunho de um poeta que, embora ligado a movimentos ideológicos de seu tempo[3] (não esqueçamos sua amizade para com Engels e Marx e seus poemas influenciados pela ideia de ambos, como “Os Tecelões de Silésia”), jamais sacrificou a poesia ao altar dos partidos, conforme seu próprio testemunho e compromisso, preferindo, como no caso do poema em questão, antes a sátira do que a deformação moralista.

Por fim, pode-se dizer que Heine foge, resoluto, ao dilema inicialmente apresentado neste ensaio mediante a simples retomada da verdade contida nos clássicos versos de Catulo. Pois, afinal, “a um poeta pio convém ser casto/ele mesmo, aos seus versos, porém, não há lei”.

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NOTAS:

[1] Goethe notoriamente se opunha à visão um tanto dessacralizada da natureza inculta propugnada pelos revolucionários. Com o decorrer da Revolução, tornar-se-á claro o endeusamento literal da Razão (com efeito, instaurou-se o culto à Razão na Catedral de Notre-Damme por um período) e uma visão tecnicista e quantitativa sobre a natureza, algo que repugnava ao espírito de homens como Goethe e Lessing. A influência da personalidade e ideias do autor de Fausto é visível na vida de Heinrich Heine, que, anos antes, enviara seu primeiro livro de poemas a Goethe, na expectativa de sua aprovação.

[2] De acordo com alguns críticos, essa passagem do poema que celebra a volúpia de Herodíades-Salomé exerceu crucial influência sobre os mais diversos escritores europeus, que, de um modo ou outro, retomaram o tema: Oscar Wilde, Charles Baudelaire, Flaubert e Mallarmé.

[3] Conforme consta em todos manuais didáticos de literatura, Heine exerceu influência até mesmo sobre a poesia condoreira de Castro Alves, com seu poema Das Sklavenschiff [O navio de escravos].

Fabrício de Moraes

Tradutor, doutor em Literatura (UFJF/Queen Mary University of London).

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