A democratização e o impeachment por Fernando Gabeira

por Lúcio Carvalho (29/04/2017)

Para o autor, o projeto de esquerda tornou-se nominal e apartou a política do social.

“Democracia tropical: caderno de um aprendiz”, de Fernando Gabeira (Estação Brasil, 2017, 160 páginas)

O lado bom de resenhar um autor muito conhecido é que qualquer apresentação da pessoa é desnecessária e pode-se passar diretamente à obra em questão. Este é justamente o caso de Fernando Gabeira e seu novo Democracia tropical. O livro, que reúne a recente crônica política publicada por Gabeira na imprensa brasileira e o seu caderno de notas, é o décimo segundo do jornalista, ativista e ex-deputado federal.

Tomando como pontos de inflexão a redemocratização a partir da anistia, em 1979, e o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016, Gabeira unifica a reflexão de quem viveu a luta armada e o combate à ditadura militar e o desfecho político do processo de consolidação da alternativa de esquerda no poder. Uma vantagem, se é que se pode chamá-la assim, de Democracia tropical em relação aos recentes lançamentos editoriais sobre o impedimento de Dilma, é o fato de que suas análises estão calcadas no trabalho jornalístico e na observação dos fatos no calor dos acontecimentos. Quer dizer, não se trata de um trabalho que visa justificar quaisquer condutas políticas, mas tão simplesmente esmiuçá-las como quem examina o tempo presente e seus atores, tão bem conhecidos dele mesmo pelo tempo em que esteve envolvido na política partidária e por ser um cronista das desventuras do poder no Brasil desde, pelo menos, meio século.

O livro poderia ser tranquilamente dado como pessimista, e isso não porque ele faça previsões tenebrosas a respeito do futuro político brasileiro, mas por ter podido confirmar as piores expectativas que vêm sendo reveladas nos últimos anos. Para o autor, a dinâmica democrática foi colocada em risco justamente porque o projeto de esquerda tornou-se nominal e apartou a política do social, configurando-se por moldar-se rapidamente aos principais núcleos de corrupção existentes. A corrupção, segundo Gabeira, é tanto o elemento de aglutinação de uma política deteriorada quanto o fenômeno pelo qual a sociedade pode depurar-se, caso aceite enfrentá-la sem reservas e exceções.

Em linhas gerais, isto é o que mais importa dizer a respeito do livro, mas ainda há mais, porque o seu texto, diferentemente da historiografia acadêmica ou da ciência política, está mais amparado na experiência do que na coleta de impressões ou na organização de fatos isolados. Além disso, Gabeira empresta à análise dos fenômenos políticos recentes a profundidade que falta aos trabalhos, digamos, hagiográficos que têm por efeito enaltecer o heroísmo da classe política e de seus exemplares. Pelo contrário, a história que Gabeira constrói não é narrada, mas flagrada nos sucessivos tropeços e muitos passos atrás que os projetos políticos costumam dar no Brasil, sejam protagonizados pelo PT, PMDB ou PSDB, partidos que dominaram o cenário nacional nas últimas décadas e cujas figuras máximas reuniram-se melancolicamente, em tempos recentes, na posição de investigados da operação Lava Jato.

Melancolia e não heroísmo, portanto, é o substrato das crônicas de Gabeira. Poderia ser enquadrado até como peça trágica, pois afinal não se trata de uma obra de ficção. A tragédia do real, apesar de tudo o que se diga a seu respeito, é a de sempre fazer-se sentir na vida mais imediata das pessoas e também na credibilidade das instituições democráticas. Contra o sentimento generalizado de falência e de embretamento, Gabeira consegue ser por ele mesmo alentador, já que não está nem nunca esteve conformado pela “governabilidade” e, ainda que não seja nem pleiteie ser um entreposto da unanimidade, é dos raros jornalistas que procuram manter uma visão límpida da história política e dos acontecimentos recentes. Para quem pensa ainda nos termos de “nós contra eles” ou outras dicotomias igualmente simplórias, talvez seja bastante difícil ou forçoso localizar nele qualquer traço de identificação ideológica. Isso importa pouco, porque de quem foi compelido a limpar de e em si mesmo os vestígios e ranços a que tantos se apegam como se conteúdo fosse, apenas se deveria exigir clareza e tranquilidade, e isso é o que não falta nas análises e registros do seu livro.

Lúcio Carvalho

Editor da revista digital Inclusive. Lançou em 2015 os livros Inclusão em pauta e A aposta (contos).

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