Deuses tão sanguinários quanto desconhecidos

por Fabrício de Moraes (21/04/2017)

Os discursos inflamados de Hitler e os disparates de Rosenberg são apresentados como o que, de fato, são: secreções infernais.

“O diário do diabo: Os segredos de Alfred Rosenberg, o maior intelectual do nazismo”, de Robert K. Wittman e David Kinney (Record, 2017, 462 páginas)

Até mesmo a leitura mais superficial nos permite perceber que O diário do diabo, de Robert K. Wittman e David Kinney, reúne, numa combinação cada vez mais rara na literatura jornalística atual, três aspectos admiráveis: uma prosa fluida e cristalina, à qual todo jornalismo deveria aspirar, um trabalho de pesquisa formidável, com informações, notas de rodapé e referências bibliográficas de primeira linha, e uma estruturação concatenada dos fatos, ideias e trechos do diário de Alfred Rosenberg, o principal intelectual do nazismo, que dá nome ao livro.

Os primeiros capítulos da obra centram-se nos acontecimentos e circunstâncias pouco antes da derrota do nazismo, quando os líderes do partido fugiram, destruíram ou ocultaram os documentos, diários e também artefatos e obras de arte ilegalmente obtidos. Em meio a esse contexto, os autores narram os esforços e episódios quase rocambolescos pelos quais passaram Robert K. Wittman, Henry Mayer (consultor sênior no Museu Memorial do Holocaustos, nos Estados Unidos) e outros interessados no diário de Rosenberg, que Robert Kempner, alto funcionário público que combateu o nazismo quando de sua ascensão e posteriormente atuou na promotoria nos julgamentos em Nuremberg, havia obtido e reunido, com outros documentos dos nazistas, em seu acervo pessoal – reconhecidamente o maior arquivo individual sobre o nazismo e o Holocausto.

Esses escritos pessoais de Rosenberg, encontrados somente em 2013, permaneceram ocultos por décadas a fio, passando tanto pelas mãos da esposa e da amante de Kempner quanto pela biblioteca pessoal de Herbert Richardson, um ex-professor de teologia em Harvard, editor de obras de qualidade acadêmica duvidosa, e homem de uma erudição não menor do que sua megalomania.

Os capítulos da obra alternam-se entre episódios da vida e política de Rosenberg e as vicissitudes de Robert Kampner, incluindo sua fuga para os Estados Unidos e as dificuldades enfrentadas inicialmente. Os acontecimentos na vida de ambos os homens são engastados, por assim dizer, em todo o quadro político da época, na Alemanha e na América.

São tantos os reveses na longa jornada pelo diário de Rosenberg, que, não fosse a aversão nítida dos autores à linguagem grandiloquente, o texto poderia se desgarrar ou mesmo perder-se num dédalo. A bem da verdade, por vezes diversas, os discursos inflamados de Hitler e os disparates esotéricos e racistas de Rosenberg, evidentes nos trechos citados de seu diário, são apresentados e analisados como sendo o que, de fato, são: secreções infernais, como já o título permite entrever.

Apesar de ter sido um prolífico escritor e jornalista – não que isto, em seu caso, seja algo minimamente louvável –, Alfred Rosenberg destacou-se como o principal ideólogo e intelectual nazista por meio da publicação de seu livro Der Mythus des zwanzigsten Jahrhunderts [O mito do século XX], que, juntamente com Minha luta, de Hitler, constitui as nefastas bases do movimento.

A obra (termo bem generoso assim designar uma mixórdia de teorias pseudocientíficas racistas e mitologia nórdica) retoma as ideias racistas do conde francês Joseph Arthur de Gobineau, que, em 1853, publicou seu Essai sur l’inégalité des races humaines [Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas], um esboço de história mundial vista a partir do prisma da raça; as proposições de Houston S. Chamberlain, um britânico casado com a filha de Richard Wagner (outro antissemita), fanático pelo então império alemão, e que, em 1899, publicou o livro The foundations of the nineteenth century [Os fundamentos do século XIX], no qual também apregoava a superioridade dos teutões e a degeneração dos judeus; e, por fim, numa interpretação deturpada dos estudos filológicos que buscavam reconstruir as origens das línguas indo-europeias com a suposição da existência de um grupo linguístico que habitou primeiramente na Ásia Central, por volta de 1800 a.C., nomeadamente, os “arianos” (do sânscrito: “nobre” ou ainda “claro”;  a “clareza” não diz respeito à cor da pele, mas à iluminação espiritual, uma consciência em contato com o transcendente).

Conforme o livro de Wittman e Kinney esclarece, Rosenberg, nos seus planos de galgar os degraus da hierarquia nazista, era movido pela mais voraz ambição e ressentimento. Inimigo declarado de Goebbles, o ministro da propaganda, assim como de outros nomes importantes dentro do partido, Rosenberg mostrava-se absolutamente incompetente para as funções burocráticas e administrativas, o que quase lhe custou a reputação quando se encarregou do partido na época da prisão de Hitler, após o fracasso do golpe de 1923 na cervejaria Bürgerbräukeller, em Munique.

Todavia, a maior força e qualidade do livro situa-se na forma como o trabalho intelectual de Rosenberg, um vigoroso paganismo germânico e uma pregação veemente contra o que chamava de “bolchevismo judeu” (sic) estruturam o mito nazista, colmatando os projetos políticos de Hitler.

Curiosamente, ainda que tenha sido, nas palavras de William Shirer, “um palerma nazista com talento para não compreender a história” (p. 266), Rosenberg foi, porém, um ideólogo e engenheiro social exímio, talvez o maior de sua época. Desde a época em que dirigia o hebdomadário Volkischer Beobachter, que segundo seus próprios termos, tornou-se “o jornal mais odiado do país”, até pouco antes do fim da guerra, o intelectual de Hitler lançou as bases não somente de uma doutrinação, mas também de uma aculturação da sociedade alemã. Segundo Wittman e Kinney:

Rosenberg contribuiu para difundir o fraudulento Protocolos dos Sábios de Sião, publicado pela primeira vez na Rússia em 1903, o pretenso relatório de uma reunião secreta de líderes judeus que planejavam dominar o mundo mediante guerras e agitações, o controle da economia e a disseminação do ateísmo e do liberalismo na imprensa.

De semelhante modo, por mais que o livro de Rosenberg fosse controverso mesmo dentre os altos escalões nazistas, a verdade é que “o livro tornou-se um texto-padrão na Alemanha. O novo Estado nazista ordenou sua inclusão no currículo escolar e nos acervos das bibliotecas”. Com efeito, um dos pontos altos da carreira de Rosenberg, informa-nos o livro, se deu quando o escritor, por ordens de Hitler, debruçou-se sobre o projeto de um Ensino Médio nazista e na formação de uma biblioteca para estudos daquilo que chamava a questão judaica. Em primeiro lugar, na concepção de Rosenberg,

a Hohe Schule [Escola de Ensino Médio] seria o pináculo de um sistema educacional ideológico de elite. Os adolescentes alemães que no futuro quisessem ocupar posições de liderança no partido seriam encaminhados a frequentar uma das novas Escolas Adolf Hitler. Dirigidas pela Juventude Hitlerista, as escolas teriam ênfase na preparação militar e física. Os formandos mais destacados iriam depois para os Castelos da Ordem – três deles foram construídos, a um alto preço, na Renânia, Baviera e Pomerânia –, onde os poucos escolhidos fariam uma imersão na biologia racial, no atletismo avançado e no treinamento ideológico.

Evidentemente todo o domínio sobre a educação e centros culturais se deu de modo gradual, por meio do controle burocrático e bombardeamento das ideias nazistas nas estações de rádio e escolas. Desse modo, “sujeito à educação ideológica a todas as horas do dia, inevitavelmente todo cidadão alemão era apresentado às ideias radicas de Rosenberg”. Agindo de acordo com a velha analogia dos tentáculos que se estendem por todos os lados, “a Gleichschaltung, ou ‘coordenação’, colocara os nazistas no controle de sindicatos, câmaras de comércio, ligas de professores, grêmios estudantis, associações juvenis e praticamente todos os agrupamentos sociais e comunitários até o nível local, clubes esportivos, de tiro ou corais”.

Walter Benjamim afirmava que o nazismo esteticiza a política, ao passo que o comunismo politiciza a arte. A bem da verdade, e isto O diário do diabo demonstra com precisão e erudição, o nazismo tratou antes de mitificar a política, ou mais exatamente, de transformá-la em religião. É claro, a perspectiva não é absolutamente nova. Grande parte das obras de Eric Voegelin, Leo Strauss, Rousas J. Rushdoony e Herman Dooyeweerd debruça-se sobre a questão das religiões ou soteriologia políticas.

Todavia, esses autores analisavam os eventos sob uma perspectiva da filosofia política ou mesmo da teologia, em grandes tratados sistemáticos. Trata-se de um diferencial, portanto, que um livro redigido num viés jornalístico, focado especificamente no pensamento de um ideólogo, como é o caso de O diário do diabo, apresente as mitologias e, por que não dizer, a liturgia subjacente ao culto nazista. Himmler, por exemplo, “enxergava a SS como uma espécie de ordem religiosa e instituiu ritos pagãos e rituais teutônicos e vikings, que para os nazistas eram os seus antepassados arianos”.

Nesse estranho culto, “Rosenberg não era o único apóstata na hierarquia. Himmler também acreditava que ‘o confronto final com o cristianismo estava a caminho’. A SS não comemorava o nascimento de Cristo, mas o solstício de verão”.

Não esqueçamos também a influência do mito de Valhalla, o local para onde se conduziam os guerreiros nórdicos após morrerem bravamente em combate, sobre os soldados, especialmente os da impiedosa divisão Cabeça da Morte; nem a simbologia da terra prometida agora pervertida pela pena de Rosenberg: “A terra santa não pode ser a Palestina, mas a Alemanha”.

Para Alfred Rosenberg, a mensagem do apóstolo Paulo de que, na fé cristã, não há judeu nem grego – isto é, a igualdade universal perante Deus – era o equivalente ao niilismo. O ideólogo “rejeitou ainda a ideia do pecado original, porque o homem nórdico era um herói”. O próprio Hitler enfadava-se por vezes com as ideias pagãs de Rosenberg, afirmando que tinha mais a tratar do que se preocupar com Odin, embora, ironicamente, o próprio Führer, no sepultamento do marechal Paul von Hindenburg, tenha exclamado: “General, adentre agora o Valhalla”.

Portanto, de modo sucinto, uma das principais qualidades da obra é sua demonstração de como até mesmo um político inapto como Rosenberg, que teve sempre que se debater a fim de manter seu status, é capaz de desgraçar toda uma nação por meio da insistência e irradiação ideológicas. Ainda que suas ideias sejam as mais disformes e incoerentes possíveis, é certo que ele teve êxito em promover e instaurar todo um novo quadro social de referências simbólicas e culturais.

Mark Lilla, em seu livro The shipwrecked mind: On political reaction [A Mente Soçobrada: sobre o reacionarismo político], aludiu aos “esforços nazistas de retornar à Roma por meio de Valhalla”; crucial para o totalitarismo hitleriano foi a conjunção das narrativas apocalípticas com a ideia de um retorno ao passado glorioso. Daí, nos termos de Lilla, que se aplicam com exatidão ao nazismo, “quando a Época de Ouro se depara com o Apocalipse, a terra começa a tremer”.

O diário do diabo é um testemunho de que todas as narrativas políticas – sejam aquelas que se iniciam com o “era uma vez” ou com “o fim está próximo!” –, caso indevidamente manejadas, conduzem uma nação não ao eschaton ou ao Éden, mas a novos bezerros de ouro e a deuses tão sanguinários quanto desconhecidos. Afinal, como disse Robert Kempner, vítima e opositor dessas religiões políticas, “até mesmo pequenos passos na direção errada podem colocar uma nação no caminho da catástrofe”.

Fabrício de Moraes

Tradutor, doutor em Literatura (UFJF/Queen Mary University of London).

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