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Uma hora a amizade do momento iria se tornar a rivalidade do momento.

A meia-noite nem bem tinha caído, e as cinderelas que até ontem só tinham certezas geopolíticas a partir de esquemas débeis e ideológicos (Trump/Putin/Assad/Le Pen x “elite globalista”, por exemplo) logo correram para nos alertar sobre o óbvio: o futuro é incerto. Bastou o mecanismo de identificação ser quebrado.

Não tenho nada a dizer sobre a guerra da Síria, tampouco soluções. Todavia, tenho algumas divagações sobre Putin e Trump:

1) Com exceção dos santos, todos nós somos mesquinhos. Somos mais ou menos a partir do momento que tomamos consciência disso. Então, a maioria das pessoas quando olha para as coisas no atacado (a política, sociedade, economia etc.) se prende a discursos que, no mundo moderno, se tornaram ideológicos. Esses discursos dão sentido às nossas mesquinharias. São um passatempo: os males do estatismo, o problema da ausência do Estado, a construção de um mundo civilizado e tolerante, destruir o globalismo etc. Esses esquemas políticos são signos de identificação, dando um sentido de grupo que oculta nossa vontade de não tomar consciência de nossos pecados. A maioria das pessoas segue esses discursos e toma suas decisões (como o voto) a partir disto. Os políticos querem o poder, e costumam acreditar neste jogo para se manterem lá. Todas as decisões de um burocrata da política – como Merkel, Hillary, Aécio, Lula ou mesmo Bolsonaro – são padronizadas. Todos conhecem de antemão. Putin e Trump brincam outro jogo.

2) Durante a campanha americana, eu avisei que Trump não era um tipo de ideólogo, mas antes um negociador astuto que quer vencer e possui um imenso amor próprio. Trump não foi dominado pelos ideólogos (como Bannon), mas soube manipulá-los. A exclusão de Bannon do Conselho de Segurança Nacional sem lhe tirar do governo é prova disso. Pois bem, para Trump, o jogo sempre está na mesa e sua reação nunca é padronizável. Ele sempre arriscará uma jogada que gere incertezas, para destas tirar vantagens. Putin também joga este jogo, mas de outro modo.

3) Existe uma coisa chamada “escatologia russa” que ronda os círculos de poder em Moscou. Escatologia que serve a “Rússia Grande”. A ideia de que a Rússia é a condutora da “renascença espiritual”, que ela irá reconstruir a tradição cristã da qual a Igreja Católica Apostólica Romana é um ramo decaído. Um cristianismo paganizado com raízes romanas, restabelecendo – a partir da Europa oriental – as origens do império. Uma perversão onde o cristianismo funciona como uma nostalgia das proteções sacrificais de outrora. Assim, o povo russo estaria destinado a essa grande missão de restauração “cristã”, conduzindo o oriente às glórias originais de outrora. Nesse caminho, o povo russo será perseguido até conquistar novamente a grande Constantinopla. Essa restauração é a volta da espiritualidade como só poderia ser: como farsa. Uma perversão materialista da escatologia, agora como reação espiritual. (Sobre a perversão da escatologia dos ortodoxos, leiam este artigo do ortodoxo Vladimir Moss).

4) Putin também não é um ideólogo. Como Trump, possui um imenso amor próprio. Seu orgulho não é um compromisso espiritual. Ele não é o czar Alexandre I durante o Congresso de Viena pensando sobre a Santa Aliança. Putin não acredita em nada além de si mesmo. Mas é por acreditar em si mesmo que se sente orgulhoso e confiante como homem que conduz o povo russo para o destino de suas grandezas. Assim, conduz a si próprio para a glória. Sua reação também não é padronizável, porque ele alimenta o caos ao confiar na vitória. E por que ele confia na vitória? Porque crê que a Rússia tem substância, ao contrário do ocidente liberal, o que o tempo provará. Ele não acredita nisso por compromisso espiritual, mas porque é o que lhe dará a glória.

5) Putin está preparando a Rússia para a guerra há uns dez anos, como se esta fosse uma consequência inexorável do destino grandioso do povo russo (na verdade, do seu próprio destino).

6) A motivação de Assad se chama Putin. E Trump sabe disso. Com o último ataque químico sírio, Putin estimulou o caos, como vem fazendo há anos. Trump, que realmente o admira, não pode ser seu amigo, pois ambos se repelem, por querer o mesmo objeto (a vitória). Uma hora a amizade do momento iria se tornar a rivalidade do momento. Trump não respondeu com mísseis por “emoção” com fotos de crianças, nem conclamou o “mundo civilizado” porque acredita em alguma merda nessa vida. Ele também não está interessado em desconcertar jornalistas ou convencer eleitores sobre sua relação com a Rússia. Trump é dependente de outro narcótico mais poderoso e interessante do que estes: uma dose cavalar de amor próprio. Ele sabe que precisava jogar o jogo, pôr as peças em circulação, responder o caos com caos, tentando tirar vantagem lá na frente. Trump está fazendo aquilo que sempre fez como empresário. O ato de Trump não tem nada a ver com a Síria, que é um triste e macabro palco para estes dois homens, mas com Putin.

7) Putin testou Trump. Trump testou Putin. Os dados rolaram na mesa. Não sabemos qual será a reação russa. Não sabemos se Putin continuará instigando o caos. Napoleão era uma figura parecida com ambos (a Grande França era só uma desculpa para o Grande Napoleão). Faltou para Napoleão outro Napoleão para duelar e respeitar. Essas figuras só param diante do espelho. Napoleão não soube parar com o que tinha em mãos, porque não encontrou nada a sua frente que lhe fizesse ter medo. Um medo humano, conservador, que lhe impedisse de seguir seu instinto de querer sempre mais. Foi derrotado pelo general Rússia, mas e agora?

8) Nossos burocratas da política tentaram parar Putin com atos padronizáveis. Despertaram apenas um bocejo do russo. Putin sorri quando Merkel, Hillary ou qualquer outro decidem agir. É como ver uma criança tentando parar um homem movido por imensa vaidade e convicto por esta. Conseguirá alguém que joga este mesmo jogo?

9) Por fim, quem está duvidando do uso de armas químicas pelo Assad parece aqueles velhos comunistas duvidando dos crimes de Stalin. O uso não foi só ontem, ou anteontem, ou nos últimos anos. A inteligência militar americana não é composta de gente como nós, meros palpiteiros, e possui meios para ter clareza sobre a realidade disto. Como se possuía clareza sobre Saddam e foi escolhido mentir deliberadamente. Os “céticos” parecem Aloysio Nunes pedindo investigação. Por acaso, se alguém escutou gemidos vindos do trópico, deve ter pensado: Fica na tua, nanico. É hora de criança ir para a cama.

Elton Flaubert

Doutorando em história das ideias (UnB). Estuda a fundação da ONU.